terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O rapto da Feiticeira

 

Por volta das dez da noite, Baltus sentiu todos os pelos do corpo eriçarem ao avistar, da torre de vigia, o campo de força mágico estourar feito uma bolha de sabão. A xícara de café saltou dos dedos e rodopiou pela mesa até se espatifar no assoalho de madeira. O sinal de alerta gritou ao mesmo tempo em que as criaturas noturnas chegaram em bando. Não houve tempo para compreender que tipo de feitiço teria sido capaz de desfazer a proteção da vila. O último pensamento, sua filha e esposa, depois apenas a dor da dilaceração em vida. Unhas e dentes, morte e desgraça.

Meredith desesperou-se ao ver a horda de vampiros ondulando o solo logo abaixo. Eles não demorariam em alcançar seus aposentos no alto do castelo. Abriu a gaveta ao lado da cama e escreveu alguma coisa num papel, às pressas.

– Detrich – sibilou –, Kotzland é o reino mais próximo daqui. Leve isso. Faça com que chegue ao rei. – Colocou o bilhete num bornal e pendurou-o no pescoço do amigo de forma nervosa. Em seguida impeliu a ele uma magia para que pudesse cumprir com a missão. Então o vitral se rompeu vomitando cacos de vidro e revelando as asas negras e as garras que levaram para longe a feiticeira de Gadham.

Dezenas de noturnos invadiram o recinto. Sob os olhos de Detrich, os bichos do inferno pulavam feito macacos, quebravam tudo ao redor, escalavam as paredes. Eles voavam e fediam.  O amigo da feiticeira tremeu de medo, mas permaneceu imóvel e quieto atrás da porta escancarada. Talvez Meredith o houvesse presenteado com a invisibilidade. Ou talvez, ele sempre a tivera, assim como seu pai e seu avô.

Do lado de fora, em posse do que viera buscar e ganhando os céus, Noctem deu o sinal aos servos e todos se retiraram, deixando um rastro de sangue medonho. Poucos habitantes sobreviveram ao ataque. Cada casa da vila foi violada, cada marido, esposa e criança, assassinada. Os que ainda possuíam algum resquício de vida, agonizaram até a chegada do sol impiedoso de Gadham, quando foram finalmente dizimados por seus raios.

Detrich estava protegido, mas não sabia por quanto tempo. Por este motivo, tão logo os vampiros debandaram, ele iniciou sua jornada para Kotzland. Embora longe do reino destruído quando o sol apontou no céu, foi capaz de ouvir os estalos das carnes do seu povo fritando. Sem o campo de força de Meredith, nada sobrevivia à fúria do astro rei. Apenas as profundezas das cavernas das terras do sul possuíam segurança. Mas estas eram tomadas por Noctem e suas bestas da noite.

***

 

Há dias e noites sem as provisões necessárias para a jornada à qual enfrentava, Detrich movia as pernas de forma automática. Os arremedos de passos o arrastavam para frente num ritmo inconstante e precário. Ele sentia muita sede e o cansaço o abatia.

Sob o encanto de Meredith, a sensação térmica era de cinquenta graus, o suficiente para conseguir chegar a Kotzland com vida, desde que não demorasse muito. Ao seu redor nada além do solo seco, rachado pelo calor infernal e as miragens de Oasis exercitando o pensamento, ajudando-o a manter-se firme em seu propósito.

Mal pôde acreditar quando avistou as muralhas de Kotzland e embora se esforçasse para andar mais depressa, as línguas de fogo cuspidas do céu o atrasavam. As paredes de pedra logo à frente dançavam em ondas escaldantes sob o olhar prejudicado do andarilho. Ele temeu morrer ali tão perto de seu destino, mas não poderia deixar de entregar a mensagem. Respirou fundo. O ar quente rasgando seus pulmões fazia de seus movimentos terríveis martírios. Ainda assim, ele seguiu ultrapassando todos os limites de seu corpo e de sua mente. Era preciso chegar ao rei a qualquer custo. Meredith deveria ser salva.

Aos portais de Kotzland, Detrich perdeu os sentidos. O corpo vencido pela exaustão desabou depois de trombar contra a madeira da porta usando o resto de suas forças. O barulho despertou as duas sentinelas que guardavam a fortaleza pelo lado de dentro e elas abriram o recurso de imediato.

Esperando ver o rosto de Meredith, a única capaz de transpor o deserto e alcançar Kotzland com vida àquela hora do dia, os guardas não cogitaram a possibilidade de ser qualquer outro além da feiticeira do lado de fora. A fortaleza jamais corria perigo enquanto o sol estivesse suspenso e o campo de força mágico mantinha os vampiros afastados durante as noites.

Quando a baforada quente de Ghadam invadiu o recinto revelando o pobre Detrich caído ao chão, as sentinelas se espantaram.  De pronto, puxaram o corajoso visitante para os braços gélidos de Kotzland, onde agora os portais fechados anteparavam o calor.

O frescor do ambiente foi aliviando o tormento aos poucos. Do corpo do andarilho, uma fumaça branca se soltava por conta do contraste de temperatura e tão logo a consciência restabeleceu, ele se deu conta do cantil que derramava água em sua boca. Sorveu todo o líquido com desespero e então outro cantil foi derramado por inteiro e mais outro e mais outro. Até que a sede fosse saciada por completo e ele pudesse, finalmente, se colocar de pé.

– Este é o cavalo da feiticeira – disse uma das sentinelas. Detrich confirmou com um movimento de cabeça e resfolegou vibrando as narinas.

– Onde está Meredith? – perguntou a outra ao corcel branco, mas ele não podia responder com palavras. Balançou o pescoço evidenciando o bornal.

– Está bem. A resposta está aí dentro, não é, amigão? – acariciou a crina perolada. – Vou levá-lo ao rei imediatamente – dirigiu-se ao outro guarda –, ele saberá o que fazer.

– Vá. Eu vou ficar aqui guardando os portais. Não demore. Tenho um mau pressentimento.

***

– Está além dos meus poderes fazer o que você quer, Noctem! – Meredith berrou pela milésima vez. A parca claridade vinda das grades da gaiola de energia onde fora trancafiada, permitia-a enxergar alguns metros ao redor.

– Durante muitos séculos, eu acreditei estar além dos meus poderes desfazer os campos de força dos reinos – explicou o algoz com ares de superioridade. – E mesmo que eu pudesse, não conseguiria prender você, tamanha a sua eficácia, eu reconheço. Mas veja aonde cheguei! Nada é impossível para quem quer, Meredith! Basta um pouco de persistência.

– Se quer tanto extinguir o sol de Gadham, então por que não o faz sem mim, já que é tão poderoso?

– Bem, extinguir o sol é um pouco de exagero. Afastar dele o planeta seria mais fácil e você sabe que eu não posso sozinho. É duro ter que admitir, mas preciso de você. E quando Gadham repousar na escuridão, meu povo será livre.

– Os nossos povos já são livres, Noctem. Você não entende! Temos as noites para irmos aonde quisermos, já não basta?

– Você se contenta com pouco. Esse é o seu problema. Eu quero mais tempo lá fora. Sem o sol...

– Sem o sol, todos congelariam. O afastamento do planeta não vai impedir que a luz e o calor cheguem até nós. A sua burrice me enoja!

– Ora, ora ora... Que bruxa inteligente! – zombou. – Não vamos tirar Gadham da órbita solar, apenas afastá-lo o bastante para que a luz não chegue.

Meredith suspirou. Como explicar algo a quem não quer entender? Impossível manter o planeta na órbita e torná-lo inalcançável pelo sol.

– Eu não tenho poderes sobre o sol, o planeta ou o espaço. E mesmo que tivesse, não o ajudaria – contestou com os olhos fixos na aberração alada.

– Vai cooperar, sim! Você teve uma amostra do que posso fazer aos quinze reinos que ainda estão invictos. Eu acabarei com todos e nenhum humano restará. Quanto vale as vidas deles pra você?

Meredith baixou a cabeça e engoliu em seco.

– Se matar a todos, seu povo também perecerá – falou em baixo tom.

– É a minha vez de te chamar de burra, oh grande feiticeira de Novic! O sangue nunca foi nosso alimento aqui. Aliás, até foi. Mas isso já faz tempo. Agora é apenas diversão. Como você acha que sobrevivemos depois de expulsarmos os humanos das cavernas e de os campos de força serem instalados nos reinos onde vocês se agruparam?

– Essa é uma pergunta que eu sempre me fiz, mas não encontrei respostas. Nós não os tememos, Noctem! Poderíamos exterminar a todos vocês, entretanto prezamos pela paz.

– Sim! Cada qual em seu território! A velha concepção de que cada vida deve ser respeitada. Isso é realmente tedioso, sabe, Meredith. Contudo, as coisas ficarão do jeito que são tão logo você fizer o que eu mando. Cada qual em sua infinita paz. Tem minha palavra.

Meredith virou a cabeça, desconsolada. Não acreditava nele. Os olhos pousaram num escudo recostado à parede. – Warmoth... – sussurrou, espremendo os olhos úmidos de lágrimas – Warmoth está entre vocês...

– O seu irmão a traiu. Traiu seu povo em troca da vida eterna, em troca da promessa de governar Gadham ao meu lado. Parece que a minha paz é melhor do que a sua, não é mesmo?

– Warmoth desfez os campos mágicos. Nunca foi você. Ele os provê com a energia de que precisam... Não posso acreditar. Eu pensei que ele estivesse...

– Morto – disse Warmoth, revelando-se por detrás da escuridão de uma fenda na caverna.

A feiticeira indignou-se. Ver o irmão transformado numa besta noturna a consternou. Sua aparência era cinza e suja. Da boca sorridente, saltavam os caninos grandes, perfurando à distância um coração bastante magoado.

– Então é isso. Tudo está claro agora. Isso explica muita coisa...

– Chega de conversa! – interpelou o líder. – Agora que a família está reunida, podemos iniciar o ritual. Ou nos livramos do sol, ou o dos humanos. Você escolhe, Meredith! A noite chegou. Devo agrupar a horda e partir para a festa?

Há até alguns momentos, a feiticeira estivera disposta a barganhar, pois duvidava dos poderes de Noctem. O intelecto precário do líder dos vampiros era algo em seu favor. Entretanto, a situação mudara. A força de Warmoth era infinitamente superior a sua. Ele poderia afastar o planeta do sol sozinho, o que a fez se perguntar por que, afinal, precisavam dela.

– Por que precisam de mim? – quis saber.

– Horda, à postos! – Noctem decretou e a caverna pôs se em ordem até onde as vistas alcançavam.

– Não! Por favor, não! Deixe o povo em paz! Eu vou... Eu vou tentar.

– Ótimo! E é bom que consiga! – lançou-a um olhar de esguelha. – Descansar! – bradou.

 E todos se dispersaram na escuridão.

***

Assim que Detrich entregou a mensagem, o rei Kotz reuniu o seu exército. Precisaria convocar os homens dos quinze reinos para que juntos resgatassem Meredith. Então dividiu a sua tropa em quinze partes iguais, cada grupo composto por cerca de duzentos soldados. Antes mesmo da noite refrescar o dia quente, eles partiram.

Detrich correu sem montaria pelo descampado de Gadham. Ele iria direto para as terras do sul, onde os exércitos iriam se reunir para invadir as cavernas e exterminar os vampiros. Sua missão era localizar em qual delas se encontrava a feiticeira sequestrada, assim não perderiam tempo quando todos chegassem ao local combinado.

Em quatro dias e três noites, o corcel atravessou as fronteiras das terras do sul. O encanto que o impedia de queimar sob o sol ainda resistia, mas os soldados levariam mais tempo. Eles se guardavam em uma das fortalezas durante o dia e seguiam viagem apenas à noite.

O cavalo estava impaciente. Não foi difícil localizar Meredith. A luz rompendo a escuridão de uma das cavernas denunciou o cativeiro, mas ele precisava esperar pelos outros. Ninguém o notou. Fora o próprio Warmoth quem, um dia, encantara os animais, tornando-os invisíveis aos noturnos como parte de uma experiência. A intenção era tornar a vida dos humanos mais segura utilizando o mesmo procedimento. Entretanto, quando a primeira parte do teste fora concluída, Warmoth desapareceu e todos choraram a sua morte.

Sabendo que se ficasse ali cometeria uma loucura, Detrich decidiu retornar ao reino mais próximo e lá se encontrar com um dos exércitos para que então voltassem juntos.

***

– Qual é o plano? – Perguntou o rei de Midland aos cinco cavaleiros, porta-vozes do grupo.

– Os vampiros não sabem que estivemos nos preparando para esta situação há muito tempo. Todas as armaduras e espadas forjadas dia após dia, desde o sumiço de Warmoth, finalmente serão usadas.

– A paz será quebrada.

– A paz foi quebrada quando o povo de Novic foi assassinado e Meredith sequestrada. A feiticeira precisa de nós agora. Nós esperávamos por isso, vossa alteza sabe bem. É chegada a hora. Podemos contar com a sua ajuda?

– Certamente – assegurou o rei, convocando de imediato os seus soldados.

Não houve reino que ficasse de fora ou que se recusasse. E após sete dias e seis noites, quarenta mil homens bloquearam as entradas das cavernas. Elas eram muitas e as espadas de prata cortavam cabeças e membros sem descanso. Armados apenas com dentes e garras e desprovidos de destreza, os vampiros eram exterminados com facilidade, embora seu número parecesse infinito, deixando os soldados bastante cansados.

Noctem estremeceu quando a matança começou. Não podia imaginar que toda Gadham possuísse armas e vestimentas apropriadas para a guerra. No topo de uma montanha, ele escoltava os irmãos e assistia seu povo morrer. Alguns se salvavam ao ganharem os céus, mas a maioria, que estava dentro das cavernas no momento do ataque, não conseguia escapar.

Warmoth mantinha uma mão pousada no ombro de Meredith e a outra estendida ao espaço. Com a união de suas forças, o pequeno planeta era afastado aos poucos. Antes do nascer do sol, deveria estar num lugar seguro para os vampiros. Meredith se sentia exausta. Entendia agora por que precisavam dela para a investida. Ela servia como condutora e morreria em breve no lugar do seu irmão traidor.

Um grupo de guerreiros subiu por detrás da montanha, mas a intenção da surpresa não fora possível. As bestas voadoras os denunciaram, atrasando-os como podiam e colocando Noctem em alerta.

– Vamos! – ele berrava aos feiticeiros. Depressa com isso!

Meredith caiu de joelhos continuando a ter sua energia drenada e direcionada ao espaço.

A luta se prolongou e a claridade do dia foi se aproximando aos poucos.

– Depressa! Vamos todos morrer queimados, seus idiotas! – desesperava-se o líder, impossibilitado de esconder-se numa das cavernas, tomadas pelos soldados.

Detrich percebeu que o exército não chegaria ao topo da montanha. Os seres voadores agarravam um a um pelos ombros, jogando-os para baixo. Precisava salvar Meredith a qualquer custo. Reuniu sua coragem e pôs-se a subir em disparada, desviando dos vampiros, transpondo as pedras e os obstáculos com precisão.

Noctem o viu chegar e voou. O coice inesperado arremessou o irmão da feiticeira morro abaixo, interrompendo o ritual. Meredith caiu desmaiada, pálida como um papel.

Ele tentou colocá-la sobre si. Baixou o pescoço, ergueu-a mais de uma vez e ela sempre escorregava. Tinha que tirá-la dali. O sol a mataria.

Os guerreiros de Gadham continuavam a dizimar as criaturas, tentando impedir que saíssem das cavernas e voassem. Mas ao notarem o sol iminente, mudaram de estratégia. Abriram caminho para os vampiros e um enxame negro povoou o céu.

Detrich tentava de tudo, mas não conseguia colocar Meredith em seu lombo. Com o primeiro raio do sol por vir e num ato de desespero, postou-se sobre ela, na esperança de salvá-la.

Warmoth fora resgatado por Noctem. Estava fraco e jazia pendurado nas garras fortes que o sustentavam no ar.

Então ele chegou. O astro rei mostrou-se finalmente trazendo pânico e desolação.

Os vampiros explodiram um a um e uma chuva de cinzas caiu sobre os soldados de Gadham. Esperando também pela morte, muitos homens se agacharam, protegendo o rosto com os braços. Outros conseguiram se abrigar nas cavernas agora vazias.

Com a respiração acelerada e o corpo trêmulo, Kotz foi o primeiro a perceber não ser ferido pelo sol. A gargalhada sonora tirou todos do transe. Aos poucos, os guerreiros foram se levantando, sentindo o calor brando a tocá-los, livrando-se dos elmos com incredulidade.

Os soldados saíram das cavernas hesitantes e com alegria testemunharam o milagre.

O grupo que tentava subir a montanha, finalmente conseguiu chegar ao topo. Colocaram Meredith sobre seu cavalo exultante e aliviado com o desfecho.

A feiticeira exausta acordou dias depois, quando em segurança repousava sob os cuidados do reino de Kotz. Detrich, sempre ao seu lado, resfolegou ao vê-la abrir os olhos e relinchou com alegria, fazendo com que todas as pessoas próximas aos seus aposentos viessem vê-la.

O rei contou o que havia acontecido. Meredith explicou que durante o ritual, Gadham fora afastado do sol o bastante para que ele não mais os ferisse, embora continuasse a ser letal aos vampiros.

– Não sobrou nenhum – disse o rei, sorridente.

A feiticeira suspirou e sugeriu uma grande festa de comemoração.

Com o tempo, das rochas secas brotaram a água, antes só conseguida através da magia. Conforme o vapor subia, as nuvens traziam a abençoada chuva. O verde brotou em toda Gadham agraciando o povo com frutas e verduras. Rios e lagos se formaram. O clima agora era estável. Todo o mal fora expungido. Os campos de força foram retirados dos reinos e todos puderam desfrutar da verdadeira paz.

Entretanto, olhos vermelhos de ódio se espremiam numa daquelas cavernas sem que ninguém desconfiasse.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Um sombrio mundo preto e branco


 

Samba Lelê tá doente

Tá com a cabeça quebrada

Samba Lelê precisava

É de umas boas palmadas


Quem vai a Cirandópolis pela primeira vez e vê o Bosque da Solidão ocupando toda a margem oeste do rio Cenira, não imagina que além daquelas árvores existe uma imensa fazenda. São terras onde o dono, conhecido como Barão do Bosque, mantém seus animais, sua plantação de milho e seu pomposo casarão através dos serviços dos escravos.

Há muitos e muitos anos, quando o antepassado do Barão, um forasteiro chamado Dom Rodrigues de Alvarenga, embrenhou-se por aqueles matos disposto a fazer dali o seu recanto, encontrou moradores quase primitivos. Dizem que o homem hospedou-se com os nativos e passou meses aprendendo a sua cultura. Depois de se fazer de amigo e conquistar a sua confiança, ensinou-os a falar a sua língua e prometeu alimentá-los, além de dar a eles uma moradia tão sólida quanto uma rocha, onde nem um vento ou chuva pudesse atingi-los. Assegurou com veemência a proteção de todos contra o frio e a fome, e jurou livrá-los dos perigos da floresta.

Diante da tão espetacular promessa, os olhos de todos os homens, mulheres e crianças da tribo ganharam novo brilho. Entretanto, Dom Rodrigues foi questionado sobre o que iria querer em troca do favor.

Ele não mentiu. Disse precisar de homens dispostos a trabalhar; desmatar as árvores e construir o recanto planejado. Caso o ajudassem, seriam como uma família vivendo no paraíso. Dom Rodrigues explicou como seria o local, despertando neles um avolumado de sonhos onde depositaram enorme expectativa. Garantiu que depois de tudo pronto, se eles quisessem fazer pequenos serviços, poderiam continuar morando na fazenda, onde nunca mais, nem uma besta selvagem tiraria a vida de seus filhos inocentes.

O trabalho em troca do conforto e da segurança pereceu bastante justo. E foi assim que, felizes da vida, as pessoas da tribo concordaram em ajudar o forasteiro na sua investida. Cada árvore cortada, cada tijolo fabricado para a construção da casa grande e da senzala, cada semente cultivada e cada animal criado tem o suor daquele povo. Até os dias de hoje os oriundos da mata são escravos na fazenda, herdada nesta geração pelo Barão do Bosque; o homem mais cruel com quem tiveram que lidar.

De fato, a estabilidade prometida se cumpriu, mas os pequenos serviços tornaram-se pesados fardos. De repente, viram-se presos ali. Jamais poderiam abandonar aquele tipo de vida e voltar a morar na floresta. Os que tentaram foram acorrentados, castigados e até mortos.

Embora perder os entes queridos para a morte por conta da crueldade do Barão fosse triste e doloroso, o óbito da sanidade de alguém amado parecia tão devastador quanto o fim da vida. Era nisso que pensava Vinza, ao olhar desconsolada para o marido cavando a terra com uma pá, só para preencher o buraco novamente depois.

Não havia lógica alguma no ritual que Zuri passou a seguir desde que a sua mãe, Samba Lelê, fora assassinada. Ele parecia não se importar com os pares de olhos que o observavam de dentro da senzala. Nem uma voz ousava embaraçar-se ao som das pazadas na terra. A única intrometida era a madrugada escura, que vez ou outra, ressentida por ter a sua quietude quebrada, chorava gotas de garoa.

Vinza não se atreveria interrompê-lo e nem questioná-lo sobre os motivos da estranha atitude. Ela havia perguntado a ele há algum tempo. Queria saber o que se passava em sua cabeça, mas em vez de uma resposta coerente, ela se deparou com um homem feroz, que prontamente a atacou com violência, mesmo estando ela prestes a dar à luz uma criança.

Um firme silêncio era a resposta de Zuri aos outros indagadores. Evidentemente, o único filho de Samba Lelê estava vivendo momentos de loucura. E não era para menos; dias depois da morte da mãe, o pobre diabo recebeu a notícia de que a esposa havia engravidado do Barão; situação bastante comum na fazenda. Dezenas de filhos mestiços e bastardos do senhor daquelas terras nasciam e cresciam para servir a ele e aos seus descendentes brancos. Mas Zuri indignou-se a tal ponto, que preferia cavar, cavar, cobrir, cobrir, em vez de falar, chorar, ou quem sabe, acabar matando alguém. Pelo menos assim pensavam todos. Não poderia ser outra coisa senão um modo de externar a dor.

Depois da exaustiva tarefa, ele sempre se aproximava da senzala arrastando os pés a passos lamentosos e previsíveis. Seu semblante era tão decifrável quanto o olhar de um peixe. Sem dizer palavra, deitava-se e dormia. Sob sua cabeça, um travesseiro de palha e um sombrio mundo preto e branco. Pelo seu corpo, olhares pesarosos

passeavam, carregados de pena e de julgamentos que caíam sobre Vinza como se ela fosse a culpada pela desventura do marido.

Mas ninguém poderia saber o que estava acontecendo, exceto ele próprio. O seu comportamento nada tinha a ver com a gravidez da esposa. Obviamente ficou louco quando soube da criança, temia que não conseguisse aceitá-la em seu meio. O desejo do patrão por Vinza não era segredo para ele e nem para ninguém. Nenhuma mulher escolhida pelo Barão tinha a opção de recusar o que ele propunha, tampouco tinham seus companheiros o poder de impedir que elas fossem satisfazer as vontades do seu senhor.

Zuri não correspondia em nada à imagem que faziam dele. A loucura que todos achavam tê-lo possuído, não passava de pura sensatez. Um dia eles saberiam o porquê do buraco. E este dia poderia bem ser amanhã ou depois.

Agora, no caminho do inconsciente, achava que seria capaz ao menos de livrar-se das ásperas memórias, mas elas vinham em seus sonhos enquanto ele assistia a tudo repetidamente; um espectador da própria desgraça. Nesses momentos, sua mente voltava-se pensativa para a morte. Embora tivesse ciência de ser aquela a sua pena a ser cumprida, a predisposição para cometer a covardia dos fracos andava de mãos dadas com o cansaço. Ele não aguentava mais. Ainda que não houvesse emoção alguma petrificada em sua fisionomia, por dentro os sentimentos de culpa, fracasso e remorso misturavam-se com vagos fragmentos de lembrança e a sua vida havia se tornado tão surreal quanto aquele pesadelo confuso. Um sonho torpe do qual ele só queria acordar.

Quando o dia nasceu, Zuri já havia decidido o que fazer a respeito daquela sensação ruim. Embrenhou-se no milharal e sentou-se com as pernas cruzadas, deixando que as folhas verdes o acobertassem, escondessem-no até do próprio céu. Embora os raios de sol teimassem em passar pelas pequenas brechas sobre sua cabeça, ele não se sentiu espionado. Estava fora da realidade. A faca em sua mão tremeluzia desencadeando uma vertigem gigantesca. O rosto refletido na lâmina tinha uma expressão que ia muito além da derrota; estava torto como a sua alma, desfigurado como o seu destino.

Não fosse pelas folhas salpicadas de céu atrás de si, ele se permitiria cair no abismo azul e infinito. Mas em vez disso, engolfado num estado febril sem precedentes, lembrou-se do som dos passos do barão se aproximando da senzala na fatídica noite em que sua esposa fora arrancada do seu lado. As imagens voltavam em sequência, torturando-o mais do que podia suportar.

Na ocasião, o barão observou os seus escravos sob as luzes bruxuleantes das velas por um longo tempo. Depois apontou o dedo indicador para Vinza, escolhendo-a como se escolhe um porco para o abate. Zuri protestou, mas o estalar dos chicotes em suas costas o fez calar. Ele ficou ali chorando, impotente enquanto Vinza era levada para a casa grande.

Ela foi banhada e preparada para entrar no quarto do barão contra a sua vontade. Viu-se nua e assustada diante de um grande espelho tão logo alguém a empurrou para o recinto. E foi só o que ela disse quando a perguntaram. O que aconteceu depois, ela nunca mencionou. Mas nem precisava, pois todos sabiam. Todos! Inclusive a senhora da fazenda e as suas filhas, cuja zanga de nada adiantava. O barão levava para a sua

cama quem bem entendesse. E nessas noites de deleite sem-vergonha, as mulheres da casa grande se recolhiam nos aposentos dos fundos, a fim de pouparem os ouvidos do que quer que fosse.

Na manhã seguinte, após ser dispensada, Vinza mal pisou na senzala e Zuri já a arrastava pelo mato. Sua intenção era alcançar o rio Cenira, cruzá-lo e desaparecer nos cantos mais longínquos de Cirandópolis. Depois iria sair da cidade, do país e do continente se fosse possível. Ele não suportaria outra noite como aquela. Não ficaria esperando que o barão levasse sua mulher mais uma vez sem fazer nada.

Não chegaram a percorrer nem um quarto do quilometro e meio de mata que separava a fazenda do rio e foram capturados pelos capangas do barão. Zuri nunca descobriu quem o denunciou, mas a ira que o consumiu durante toda aquela noite fez com que falasse aos quatro ventos sobre o seu plano de fugir. Depois disso ele calou-se quase por completo. Precisava bolar um segundo plano para a sua fuga e era exatamente isso o que fazia enquanto o chicote cortava-lhe as costas pela desobediência.

Passaram-se alguns dias e as feridas da pele cicatrizavam aos poucos. O castigo fora intenso. Talvez o barão tivesse deixado Vinza em paz nas noites seguintes se Zuri não demonstrasse tanto transtorno. Seu plano agora era matá-lo, nem que morresse também.

Mas Samba Lelê tratou de tirar tal ideia da cabeça do filho. Se o barão morresse, não haveria substituto e eles passariam fome ou comeriam apenas milho até o fim dos seus dias. Aquele homem era um mal necessário, convenceu-o. Ela não se importaria de viver com menos só para livrar-se do crápula explorador, é verdade. Contudo, não diria isso ao filho nervoso e desolado. Ocultou seus reais pensamentos e sugeriu que Zuri e Vinza fugissem no carregamento de milho. As sacas eram levadas para a cidade por carroça e por barco de tempos em tempos e já estava na época de transportá-la.

Dias depois, Simão, o responsável pelo transporte da colheita, apareceu na fazenda e Zuri considerou o conselho da mãe. O plano de matar o barão era impossível de ser concretizado por conta dos capangas que o vigiavam dia e noite. Mas o transportador não o ajudaria de forma alguma, a não ser que Zuri o pagasse por isso. O preço era três sacos de moedas de ouro. Duvidando que o escravo fosse conseguir o dinheiro, Simão seguiu trabalhando durante todo aquele dia. Havia até se esquecido do apelo do escravo e já estava indo embora quando o outro chegou esbaforido, com os sacos de moedas numa mão e a esposa agarrada na outra. Os olhos de Simão arregalaram-se diante da pequena fortuna e sem ponderar o que aconteceria, ele conferiu o conteúdo dos sacos, escondeu os dois entre a carga e partiu.

Enquanto isso, o barão e sua família se reuniam com os nobres no castelo de Cirandópolis. Um banquete em comemoração aos vinte anos do príncipe Cristóvão era servido do outro lado da cidade quando Zuri invadiu a casa grande para roubar o dinheiro.

Samba Lelê era arrumadeira e cozinheira na casa. Ela não apenas sabia onde o senhor guardava o seu tesouro, como também conhecia uma passagem subterrânea que ia de um buraco acima de qualquer suspeita no meio do bosque até a cozinha, onde uma porta disfarçada de armário escondia o caminho secreto a ser utilizado pela família como rota de fuga caso fosse necessário.

Disposta a ajudar o filho, ela revelou a ele o que sabia e por este motivo Zuri concluiu com sucesso o seu intuito.

Impossibilitados de ver o caminho ao redor e com as pernas dormentes por conta dos sacos de milho sobre eles, Zuri e Vinza não repararam quando a carroça retornou. Sem saber, naquele momento, que o transportador havia se arrependido por ter aceitado o fruto de um roubo e retornava para devolver o ouro e os escravos, o casal fazia planos para uma nova vida.

Quando Simão parou e mandou que descessem, os dois esperavam ver o rio, mas ao invés disso, deram de cara com o barão, que havia voltado do castelo e recuperava suas moedas roubadas. Ele afastou-se sem dizer palavra alguma, carregando um olhar de ódio.

– Ele não vai nos castigar? – perguntou a mulher, inconformada. E logo sua resposta veio da forma mais brutal possível. O barão do bosque aproximou-se do tronco, onde Samba Lelê estava acorrentada e muito ferida. Sem pestanejar, o senhor daquelas terras segurou o pescoço da escrava com as duas mãos e em seguida o estalo mais pavoroso da vida de Zuri e de todos foi ouvido.

– Espero que tenha aprendido desta vez! – gritou, olhando fixamente para o filho da morta enquanto limpava as mãos nas roupas, com cara de nojo por ter sido obrigado a tocá-la. – E se não for suficiente, a próxima será essa aí – apontou para Vinza e retirou-se, deixando a ameaça.

É dispensável dizer o que aconteceu depois; choros, lamentos, remorso e por fim o enterro de Samba Lelê.

Ali no milharal, com as pernas cruzadas, todas essas lembranças se esvaiam junto com o sangue de Zuri, que segurava a faca cravada no peito, tentando rasgar-se um pouco mais e sendo impedido pela dor.

Ele não viveu para ver o nascimento da criança que Vinza carregava. Não era um menino mestiço e sim seu próprio filho. E embora o mistério do buraco tivesse permanecido em segredo até a sua morte, ele se desfez de repente, feito nuvem soprada pelo vento.

Sem Zuri para enterrar a mãe sempre que ela surgia do meio do bosque, todos sentiram os ossos gelar ao vê-la pela primeira vez. Samba Lelê perambula em frente à senzala todas as noites, com a cabeça frouxa, com os olhos opacos... E de manhã cedo some como fumaça no ar.

E para quê enterrá-la, como o filho fazia, se ela sempre volta? Ele apenas queria poupá-los daquela visão infernal.

Três anos depois, olhos infantis observam a aberração.

– O que ela tem, mamãe?

– Nada de mais, querido. Ela está apenas... doente.

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