sexta-feira, 29 de abril de 2022

Hotel California


 


No bar do hotel, um antigo hóspede contava a sua história para o atencioso forasteiro:

            – Foi na tarde em que rompi com Jane por motivos que nem me lembro mais, que peguei a minha moto e segui a esmo pela autoestrada por mais de quatro horas.

            Em meio à escuridão, o vento fresco que soprava meus cabelos trazia com ele o cheio das colitas, uma espécie de planta indiana, que se alastrava pelos campos exalando um odor tão cálido que poderia até ser capaz de aquecer meu coração petrificado.

            As horas avançavam e a minha cabeça ficou pesada, a visão turva e os sentidos entorpecidos por causa da noite.

            Eu precisava parar para descansar, mas não havia nada além do breu noturno e do asfalto infinito, que corria iluminado sob as duas rodas da potente Harley-Davidson.

            Praguejei quando o tanque esvaziou e do acostamento eu acenava freneticamente para os carros que passavam vez ou outra pela escura rodovia.

            Muito tempo havia passado. Não sei precisar quanto, mas acredito que há mais de duas horas eu tentava em vão ser socorrido por algum motorista bondoso.

            Cansado e dominado pela involuntária letargia noturna, eu me sentei à beira da estrada sob o olhar debochado do farol apagado da minha moto inativa.

            Enquanto eu era estorvado por um silêncio tão intenso quanto os sonhos de um defunto, minha visão fora abordada por gêmeas luzes amarelas que gradualmente se aproximavam, acompanhadas pelo ronco do motor do caminhão, arrebentando a quietude.

            Sem que eu esperasse, o veículo parou diante de mim e um senhor assustadoramente feio deixou-se revelar pela janela lá no alto.

            Coloquei-me em pé e fui me aproximando. A luz da lua destacava sua pele deformada e um arrepio desceu pela nuca quando num sorriso horripilante ele mostrou os dentes empoleirados que lembravam as lápides de um cemitério descuidado.

            Tentando ignorar o calafrio que me percorria pela espinha, expliquei que a gasolina havia acabado e ele disse que por sorte tinha um galão do combustível guardado na boleia. Costumava transportá-lo para ajudar os motoristas distraídos que ficavam estacados na estrada assim como eu estava.

            A aparência nefasta do homem fora amenizada pela sua gentileza. Como se lesse meus pensamentos ou enxergasse o meu cansaço, comentou que logo à frente havia um hotel onde eu poderia descansar. Apesar de não ter energia elétrica, era bem aconchegante e convidativo. Antes mesmo que eu pudesse abastecer a Harley-Davidson, o gentil e pavoroso caminhoneiro seguiu o seu caminho desaparecendo estrada afora.

Não sei dizer se fiquei mais aliviado quando o homem partiu ou quando a moto pegou, mas o fato é que assim como ele indicara, o hotel estava lá.

            Engraçado eu não tê-lo percebido antes. Tenho absoluta certeza de que, do ponto onde eu estava, poderia ter visto o hotel devido às luzes tremeluzentes que brincavam nas janelas.

            O torpor sonolento deu lugar a um êxtase hipnótico quando na entrada eu a vi.

            Com as curvas de um Mercedes 1969 e um belo par de olhos castanhos, Tiffany me recepcionou dizendo: “ Bem vindo ao Hotel Califórnia” e eu perguntei a mim mesmo se aquilo era o paraíso, ou o inferno.

            Então ela acendeu uma vela e me mostrou o caminho até o quarto.

            Espelhos no teto, champanhe rosa no gelo, um lugar tão encantador quanto o rosto de Tiffany me deu as boas-vindas.

            Mesmo exausto, não pude resistir aos encantos daquela mulher e a tomei como teria tomado Jane antes de partir para sempre naquela tarde.

            Eu me sentia ótimo, como se tivesse dormido por horas e recuperado as energias, porém meus olhos não haviam se fechado nem por um minuto sequer. Sem que eu pudesse explicar, de uma hora para outra, Tiffany não estava mais comigo.

            Ao sair do aposento eu pensei ouvir vozes adiante no corredor: “Bem-vindo ao Hotel California” e o som de uma música alegre guiou-me até um salão onde garçons desfilavam com suas bandejas e hóspedes dançavam despreocupados.

            Rapazes se enroscavam sensualmente em Tiffany, que demonstrava a mais plena satisfação voluptuosa. De repente a dança fora substituída por uma orgia descontrolada e todos foram capturados por um frenesi inusitado.

            Observando as cenas explícitas que me enchiam os olhos, demorei a perceber a presença do horripilante caminhoneiro que mais cedo me socorrera.

            Parado do outro lado do recinto a me fitar, ele sorria sinistramente com seus dentes encavalados e então tudo começou a ficar claro.

            De alguma forma, meus olhos foram abertos para enxergar o que realmente acontecia, e quando caiu a máscara da ilusão, vi que não somente Tiffany, mas todos os presentes eram hórridos mortos-vivos que se esfregavam uns aos outros  desmanchando-se em carne putrefata.

            Tentei fugir, achar uma saída, livrar-me do pesadelo, mas nada do que fiz adiantou. O homem de dentes medonhos jamais deixou alguém sair. Há tempos temos tentado detê-lo, mas chegamos à conclusão de que esta é uma façanha impossível.

            Somos todos prisioneiros do nosso próprio ardil.

            Hoje minha carne morta também se desfaz. Sinto as larvas passearem pelo meu interior. O problema é que quando atingimos certo grau de decomposição, ela estaca e assim jamais seremos totalmente consumidos.

            “Bem, eu não sei qual é a sua história ou como veio parar aqui, mas não é um lugar ruim. Você pode se divertir a valer neste hotel e com o tempo acaba se acostumando. Agora abra bem os olhos e veja a realidade. Aproveite a sua estada, pois ela será eterna. Bem-vindo ao Hotel Califórnia, caro amigo!”

            Ao terminar a narrativa, o antigo hóspede presenciou mais uma vez a mesma cena se repetir. Isto sempre acontece quando os recém-chegados começam a enxergar a verdade. Eles correm desesperados, tentam achar uma saída, gritam, choram, mas acabam aceitando. Não têm alternativa.

 

(ESTE CONTO É APENAS UMA ADAPTAÇÃO DESPRETENSIOSA DA LETRA DA MÚSICA)

Respeite os Direitos Autorais. Todos os textos deste blog estão registrados.