sexta-feira, 29 de abril de 2022

Hotel California


 


No bar do hotel, um antigo hóspede contava a sua história para o atencioso forasteiro:

            – Foi na tarde em que rompi com Jane por motivos que nem me lembro mais, que peguei a minha moto e segui a esmo pela autoestrada por mais de quatro horas.

            Em meio à escuridão, o vento fresco que soprava meus cabelos trazia com ele o cheio das colitas, uma espécie de planta indiana, que se alastrava pelos campos exalando um odor tão cálido que poderia até ser capaz de aquecer meu coração petrificado.

            As horas avançavam e a minha cabeça ficou pesada, a visão turva e os sentidos entorpecidos por causa da noite.

            Eu precisava parar para descansar, mas não havia nada além do breu noturno e do asfalto infinito, que corria iluminado sob as duas rodas da potente Harley-Davidson.

            Praguejei quando o tanque esvaziou e do acostamento eu acenava freneticamente para os carros que passavam vez ou outra pela escura rodovia.

            Muito tempo havia passado. Não sei precisar quanto, mas acredito que há mais de duas horas eu tentava em vão ser socorrido por algum motorista bondoso.

            Cansado e dominado pela involuntária letargia noturna, eu me sentei à beira da estrada sob o olhar debochado do farol apagado da minha moto inativa.

            Enquanto eu era estorvado por um silêncio tão intenso quanto os sonhos de um defunto, minha visão fora abordada por gêmeas luzes amarelas que gradualmente se aproximavam, acompanhadas pelo ronco do motor do caminhão, arrebentando a quietude.

            Sem que eu esperasse, o veículo parou diante de mim e um senhor assustadoramente feio deixou-se revelar pela janela lá no alto.

            Coloquei-me em pé e fui me aproximando. A luz da lua destacava sua pele deformada e um arrepio desceu pela nuca quando num sorriso horripilante ele mostrou os dentes empoleirados que lembravam as lápides de um cemitério descuidado.

            Tentando ignorar o calafrio que me percorria pela espinha, expliquei que a gasolina havia acabado e ele disse que por sorte tinha um galão do combustível guardado na boleia. Costumava transportá-lo para ajudar os motoristas distraídos que ficavam estacados na estrada assim como eu estava.

            A aparência nefasta do homem fora amenizada pela sua gentileza. Como se lesse meus pensamentos ou enxergasse o meu cansaço, comentou que logo à frente havia um hotel onde eu poderia descansar. Apesar de não ter energia elétrica, era bem aconchegante e convidativo. Antes mesmo que eu pudesse abastecer a Harley-Davidson, o gentil e pavoroso caminhoneiro seguiu o seu caminho desaparecendo estrada afora.

Não sei dizer se fiquei mais aliviado quando o homem partiu ou quando a moto pegou, mas o fato é que assim como ele indicara, o hotel estava lá.

            Engraçado eu não tê-lo percebido antes. Tenho absoluta certeza de que, do ponto onde eu estava, poderia ter visto o hotel devido às luzes tremeluzentes que brincavam nas janelas.

            O torpor sonolento deu lugar a um êxtase hipnótico quando na entrada eu a vi.

            Com as curvas de um Mercedes 1969 e um belo par de olhos castanhos, Tiffany me recepcionou dizendo: “ Bem vindo ao Hotel Califórnia” e eu perguntei a mim mesmo se aquilo era o paraíso, ou o inferno.

            Então ela acendeu uma vela e me mostrou o caminho até o quarto.

            Espelhos no teto, champanhe rosa no gelo, um lugar tão encantador quanto o rosto de Tiffany me deu as boas-vindas.

            Mesmo exausto, não pude resistir aos encantos daquela mulher e a tomei como teria tomado Jane antes de partir para sempre naquela tarde.

            Eu me sentia ótimo, como se tivesse dormido por horas e recuperado as energias, porém meus olhos não haviam se fechado nem por um minuto sequer. Sem que eu pudesse explicar, de uma hora para outra, Tiffany não estava mais comigo.

            Ao sair do aposento eu pensei ouvir vozes adiante no corredor: “Bem-vindo ao Hotel California” e o som de uma música alegre guiou-me até um salão onde garçons desfilavam com suas bandejas e hóspedes dançavam despreocupados.

            Rapazes se enroscavam sensualmente em Tiffany, que demonstrava a mais plena satisfação voluptuosa. De repente a dança fora substituída por uma orgia descontrolada e todos foram capturados por um frenesi inusitado.

            Observando as cenas explícitas que me enchiam os olhos, demorei a perceber a presença do horripilante caminhoneiro que mais cedo me socorrera.

            Parado do outro lado do recinto a me fitar, ele sorria sinistramente com seus dentes encavalados e então tudo começou a ficar claro.

            De alguma forma, meus olhos foram abertos para enxergar o que realmente acontecia, e quando caiu a máscara da ilusão, vi que não somente Tiffany, mas todos os presentes eram hórridos mortos-vivos que se esfregavam uns aos outros  desmanchando-se em carne putrefata.

            Tentei fugir, achar uma saída, livrar-me do pesadelo, mas nada do que fiz adiantou. O homem de dentes medonhos jamais deixou alguém sair. Há tempos temos tentado detê-lo, mas chegamos à conclusão de que esta é uma façanha impossível.

            Somos todos prisioneiros do nosso próprio ardil.

            Hoje minha carne morta também se desfaz. Sinto as larvas passearem pelo meu interior. O problema é que quando atingimos certo grau de decomposição, ela estaca e assim jamais seremos totalmente consumidos.

            “Bem, eu não sei qual é a sua história ou como veio parar aqui, mas não é um lugar ruim. Você pode se divertir a valer neste hotel e com o tempo acaba se acostumando. Agora abra bem os olhos e veja a realidade. Aproveite a sua estada, pois ela será eterna. Bem-vindo ao Hotel Califórnia, caro amigo!”

            Ao terminar a narrativa, o antigo hóspede presenciou mais uma vez a mesma cena se repetir. Isto sempre acontece quando os recém-chegados começam a enxergar a verdade. Eles correm desesperados, tentam achar uma saída, gritam, choram, mas acabam aceitando. Não têm alternativa.

 

(ESTE CONTO É APENAS UMA ADAPTAÇÃO DESPRETENSIOSA DA LETRA DA MÚSICA)

quarta-feira, 30 de março de 2022

A vingança de Althorn

 


Sobre o mármore empoeirado jaz um livro aberto. Atrás das teias de aranha, o anjo de nanquim ergue a espada acima da cabeça ansiando atingir o demônio que com ele divide aquele espaço.

            Althorn ri. Uma risada amarga e resignada. A mão fantasma cujos esforços para virar a página já se esgotaram, agora pousaria no queixo, se ao menos pudesse tocá-lo.

            A prisão de pedras só poderia ser aberta caso pronunciasse as palavras da folha seguinte. Há quanto tempo? Já não sabe mais. O tempo dos vivos e dos mortos corre distinto, mas é evidente, mesmo para uma mente deturpada, que o encerramento é longo. Secular talvez.

            O ódio emana intenso. Ainda que a eternidade o engula, as lembranças estarão sempre frescas, estimulando a crescente sede de vingança realçada pelo inexecutável plano de escapar.

            Havia, porém, a ínfima possibilidade da fortaleza de pedras ser encontrada e aberta por mãos humanas. Mas este feito parecia-lhe tão improvável quanto virar a página do livro. O tempo deveria ter se encarregado de esconder a construção nas entranhas daquelas terras longínquas...

            Althorn olha novamente para Nephael, o anjo eternizado duelando com o seu pai. Este último, ao contrário da figura alusiva, vencera o celestial, que por sua vez planejara a vingança contra o grande Mitrius encerrando o seu único filho no interior daquela fortificação.

            – Vou deixar algo para que se lembre – Nephael falou abrindo o livro sobre o mármore. – Basta que vire a página e pronuncie as palavras da sua libertação.

            – O meu pai virá por mim.

            – Se acredita que ele se importa, então eu faço votos para que mantenha as esperanças.

            Inesquecível o sorriso de escárnio que o maldito anjo abriu antes de partir. Mitrius jamais viera e tudo o que tinha de seu pai era a maldita imagem...

            Tão perdido nas impossibilidades de realizar o que mais almeja, nem se deu conta do barulho vindo de fora.

            A primeira marretada contra a parede de pedras soou como um leve estampido, parecendo vir de dentro da sua mente. Os golpes não foram compreendidos de pronto. Somente quando a luz do dia penetrou pela primeira fresta, Althorn entendeu.

            O clarão vindo de fora o devolvia o vigor. Ele riu. Mas desta vez, uma risada de satisfação substituiu milhares de outras que outrora escapavam devido ao desespero.

            Analisou minuciosamente cada um dos seus salvadores. Eram três homens fortes e um mais esguio. Os que golpearam a parede estavam ofegantes. Pararam para descansar enquanto o mais mirrado observava o salão e suas relíquias. Com passos lentos ele foi entrando, afastando as teias de aranha e admirando tudo ao redor.

            Althorn apressou-se para a saída. Estava livre! Finalmente livre!

            – Agora ele me paga! – falou entre dentes.

***

 

            Nem sinal de Mitrius ou dos demônios que o serviam. O mundo parecia-lhe pacífico demais. Algo estava errado. Althorn teve a impressão de estar no meio de uma tela pintada a óleo. Ou a crosta rebelde fora recoberta por uma grossa camada de tinta, ou os celestiais haviam tomado todo o território...

            Alguns brancos sobrevoavam pelas cidades, enquanto outros apenas observavam a humanidade nos topos dos prédios, pousados feito pombas inúteis, desprovidos de qualquer preocupação ou medo.

            Ao passo que Althorn analisava as circunstâncias mais profundamente, sua presença fora notada e antes que pudesse perceber, uma enorme legião cândida o circundou.

            Não há como fugir. Eles são muitos. Se não for capaz de ser astuto agora, acabará voltando para a prisão. Tinha que pensar em algo, e bem rápido. O cerco estava se fechando. Enquanto Althorn cogitava dizer algo inteligente, os anjos se aproximavam mais e mais.

            A demasiada confusão que afetava o intelecto, o impedia de pensar. Se ao menos houvesse previsto tal situação, teria tido o tempo que agora é escasso.

            – Eu... – ele falou mesmo não sabendo ao certo o que dizer. – Ordeno que me ouçam!

            Mas a tentativa não surtiu efeito algum. Os celestiais não interromperam a sua marcha para ouvi-lo. O jeito era lutar. Mesmo estando ciente de uma provável derrota, não desistiria tão fácil.

            Então, por algum motivo além de sua compreensão, uma voz se destacou no meio do bando alvo:

            – Não o ataquem!

            A pouco mais de meio metro adiante, Althorn vislumbrou o mar de anjos estacar. Um corredor à sua esquerda se abriu.

            – Esse aí é meu! – Nephael bradou com displicência.

            “Ah, mas que ótimo... ser salvo pelo meu algoz”, pensou.

            – Agora vão! Retomem seus postos, se dispersem, saiam daqui! Tenho assuntos a tratar com o demônio.

            Os anjos se afastaram com hesitação. Retomaram seus postos nos prédios, desta vez, feito aves de rapina, prontos para atacar ao primeiro deslize.

***

 

            – Imagino que esteja confuso – o riso escarnecido, típico de Nephael acompanhava as palavras.

            – O que está havendo por aqui, Nephael? Onde estão os demônios?

            – Houve um acordo. Seus semelhantes aceitaram se recolher no submundo em troca da espada de Yahweh.

            – Mas o porquê deste acordo se meu pai já a havia tomado de você?

            – Nós a recuperamos. E esta foi a nossa perdição. O mundo virou um caos. O pacto de equilíbrio foi rompido e tudo o que restou foi morte e destruição...

            Althorn gargalhou.

            – E agora que estou livre, a sua intenção é me atirar no submundo, certo? Deixe-me adivinhar... Você quer me convencer a juntar-me a eles e caso eu me negue, seus urubus brancos darão um jeito de me castigar, correto?

            – Errado. Existem mais coisas em nosso acordo. Nós não podemos entrar no submundo e nem eles virem para a superfície. Eu sei da raiva que guarda por seu pai nunca ter ido te libertar, Althorn.

            – Sim. É uma raiva imensa...

            – Eu ofereço a oportunidade de vingar-se dele.

            – Ah... Você oferece? – o demônio riu. – Os celestiais são mesmo lobos disfarçados de cordeiros...

            – Não está em condições de zombar de nós. Eu não o trouxe até aqui sem nenhum propósito...

            – Então foi você quem enviou aqueles homens para que eu saísse...

            – De que outra forma sairia? Virando a página do livro? – foi a vez de o anjo rir.

            – Estou ouvindo, Nephael. Diga logo o que quer e pare de acentuar ainda mais o ódio que eu tenho por você.

            – Assim está melhor. Vejo que a inteligência não o abandonou.

            Althorn transbordava ira. Fitava o anjo com um olhar mortífero e feroz.

            – Tenha calma, Althorn. Desculpe-me pelas ironias. Eu as acabo lançando sem intenção, às vezes.

            – Você é um mau caráter!

            – O que não me difere muito de você, não é mesmo? A diferença entre nós é que... Bem, deixemos isso de lado... O que importa agora é que você recupere a espada de Yahweh e a traga novamente à superfície.

            – E por que a quer de volta?

            – Assuntos cósmicos... Que não dizem respeito a você.

            – E depois que a tiver, o que eu ganho com isso? O que eu ganho ao trair meu pai e meus semelhantes?

            – Trair seu pai?  Mitrius o traiu bem antes. É a sua chance de vingar-se dele. E como recompensa eu te darei um corpo. Precisará dele para pegar a espada. E assim que voltar poderá juntar-se a nós. Poderá ser um de nós.

            – Isso me parece destoante. Um demônio não pode se tornar um anjo. É contra as leis.

            – As únicas leis que restaram são aquelas que eu faço.

            – Você é mesmo um canalha! Está passando por cima dos arcanjos, pelo que entendi.

            – Os arcanjos estão ocupados demais para atentar às coisas mundanas. O que houve com você, Althorn? O confinamento o fez se arrepender pelos seus crimes? Você ficou bonzinho ou o quê?

            – Não. Eu não me arrependo de nada do que fiz. Só não gosto de ser usado, como está fazendo agora.

            – Tsc, tsc, tsc... Não, não, não... Não é bom que veja as coisas por este lado. É apenas uma troca de favores. Eu saio ganhando e você também sai ganhando.

            – Que outra escolha eu tenho?

            – Esta é uma pergunta desnecessária. Você já sabe a resposta.

            – Digamos que eu recuse...

            – Neste caso, será contemplado com mais um longo período de reclusão. Eu compreenderei se preferir ficar a sós consigo mesmo pagando as mesmas penitências dignas dos fracos.

            – Sabe Nephael, você me enoja. Mas devo admitir que os benefícios oferecidos me parecem razoáveis. Espero que possamos negociar sobre a minha aparência, pois me embrulha o estômago pensar em adquirir uma forma tão genuinamente afeminada quanto a sua.

            O anjo gargalhou.

            – Obrigada pela parte que me toca, mas sabe que não poderá permanecer na superfície com este seu aspecto genuinamente grotesco.

            – Diga-me com sinceridade, se é que tem alguma. Além de você, quantos anjos mascarados existem por aqui, hã?

            – Em primeiro lugar, eu não vivo de máscaras, e em segundo, eu não precisaria dos seus préstimos caso houvesse sob o meu comando algum demônio disfarçado. Pela última vez, é pegar ou largar!

            – Está certo. Eu vou buscar a maldita espada. Pensando bem, até que vai ser divertido.

            – Muito sábio de sua parte, meu caro.

            – Você não acha que vai ser divertido, Nephael? Hein? Eu ficar no meio de vocês fingindo ser um anjo, mesmo com todo o mal que eu desejo fazer, em especial a você?

            – As suas intenções serão revertidas, meu caro. Vai ficar bonzinho feito um gato castrado.

            – Pago para ver!

            – Esta conversa já se estendeu demais. Vamos até o reformatório para que receba o corpo e eu te passe as instruções finais.

            – Como quiser.

            – Mas saiba – apontou o dedo longo na cara do demônio –, que se sonhar em me ludibriar, estará assinando a sua sentença de morte.

             Althorn estreitou os olhos e Nephael continuou:

             – Não se esqueça de que ao ter um corpo, eu posso facilmente mandá-lo para o Tártaro, de onde nenhuma criatura jamais pôde escapar.

            – Tirano! – Althorn satirizou.

            – Chega de elogios. Vamos logo ao que interessa!

***

 

            Na base de uma montanha rochosa, a fenda camuflada por pedregulhos, era o que chamavam de bloqueio. Nome fácil de compreender, visto que nenhum anjo pode por ela entrar e nenhum demônio por ela sair.

            – Mas se nenhum demônio pode sair, como vou trazer a espada? – Althorn questionou.

            – Você faz perguntas cujas respostas já lhe foram dadas. Eu não disse que seria um de nós? Então! – Nephael falava com impaciência. – Assim que retornar, ao estar do outro lado do bloqueio, me passará a espada sagrada pela fenda. Feito isso, eu o transformarei em um celestial e poderá passar.

            – Não subestime a minha inteligência, Nephael. Por quais motivos acha que eu seria tão tolo a ponto de acreditar numa besteira dessas? Primeiro você vai me transformar e só então eu te darei a espada.

            – Infelizmente isso não será possível.  A sua tolice é evidente ao pensar que tenho o poder de transformá-lo com as minhas próprias mãos. Sem a espada de Yahweh este feito é impossível.

            – Mais uma vez me deixando sem escolhas... Muito esperto...

            – Vá, Althorn. Faça o que tem que fazer. Estarei aqui a sua espera.

            Com cara de poucos amigos, Althorn levou os dedos até a lateral da testa, jogando-os para frente a seguir. Estranhou um pouco por poder tocar-se. Há muito tempo o tato lhe fora roubado e enquanto se espremia para entrar na abertura da montanha, divertia-se com os arranhões das pedras.

            O breu que dominava o interior era mais denso do que a escuridão de seu antigo claustro. Lá ele ainda conseguia enxergar, mesmo que parcamente, o livro sobre o mármore e a brancura das teias de aranha. As pedras disformes permitiam a entrada de alguma luz pelas suas frestas, diferentemente daquele lugar novo, onde até o ar – se é que havia algum – parecia-lhe ser negro.

            Althorn foi dando um passo atrás do outro bem devagar. Sentia fisgadas nos pés por causa das pedrinhas. Uma sensação indescritível, longe de ser dolorosa. A única dor que o incomodava era a dor de ter sido abandonado por seu pai.

            – Oh... Eu fui vilipendiado – ele falou quase cantando. O eco negro o fez rir.

Sentiu que o chão havia se tornado íngreme e descendo agora ele ia rindo e cantando frases jocosas a respeito de seu ódio e sede de vingança.

            A descida foi ficando cada vez mais inclinada. Um passo em falso o fez cair num buraco invisível. Batendo e rebatendo nas pedras ele foi rolando e rolando e caindo e caindo... O tato já não lhe parecia tão agradável.

            Uma superfície reta por fim o aparou.

            Althorn tirou a cara do chão com dificuldade. Levantando os olhos, avistou uma afastada abertura. O clarão chamejante vindo de trás do portal do submundo, agora o permitia ver o restante da trilha que o levaria à vingança.

***

 

            Uma dúzia de demônios feios e raivosos coagia o desastrado Althorn com as pontas de suas lanças estiradas ao redor do corpo novo.

            Maldita hora que chegou tentando não fazer alarde. Assim que ultrapassou o portal do submundo, esbarrou em uma pedra que rolou fazendo estrondo. Ainda não houvers tempo para se acostumar a tocar coisas.  Seria complicado perder certas manias depois de quase um século em forma espectral.

            – Vim falar com Mitrius, onde ele está?

            – Quem é você e o que quer?

            – Afastem-se! – a voz de Mitrius ordenou.

            Os demônios baixaram suas lanças e deram dois passos para trás.

            Mitrius passou por eles se aproximando daquela criatura estranha que ali aparecera.

            – De que é um demônio, não tenho dúvidas – ele falou analisando Althorn da cabeça aos pés.

            – Sim – Althorn respondeu. – De que outra maneira eu poderia entrar aqui?

            Mitrius arregalou os olhos. De pronto, reconheceu aquela voz rouca e arrastada.

            – Althorn?

            – Mitrius... Quanto tempo, não é mesmo?

            – Há, há! É Althorn! – ele gritou. – Althorn regressou! Abram caminho seus dementes! – passou o braço pelos ombros do filho. – Venha Althorn, temos muito o que falar!

            – É. Pode apostar que sim.

***

 

            Ofegante e com passos rápidos e trôpegos, Althorn subia em direção à superfície. A pesada espada de Yahweh já estava em seu poder.

            Ele olhava sobre os ombros, assustado. Continuava sua marcha, ora correndo, ora escalando as rochas.

            A espada luminosa auxiliava a visão. O trajeto, mais cedo percorrido no mais profundo breu, agora podia ser observado. Era uma caverna larga, sem extremidades visíveis.

            Perguntava-se como podia ter descido tão rapidamente. Agora o covil parecia não ter fim.

            Era pouco provável que Nephael cumprisse com a promessa, mas precisava manter as esperanças. Não havia como retornar. Voltar com o rabo entre as pernas e encarar Mitrius e seus demônios depois de tudo, não estava em seus planos. Seria crucificado por toda a eternidade.

            E eis que ela surgiu. A fenda, agora desprovida das pedras que a encobriam, jogava para dentro alguma iluminação. Althorn parou diante dela e viu o anjo do outro lado.

            Esticou os dedos para constatar que estava preso. Uma parede invisível bloqueava a saída. Ensandecido, começou a desferir murros e golpes inúteis contra a barreira.

            Nephael se aproximou.

            – Tenha calma, Althorn. Confie em mim. Passe-me a espada.

            – Você não vai me tirar daqui. Não tente me enganar. Vai me deixar entregue à desgraça.

            – Não. Eu cumprirei com a minha promessa. Ainda preciso de você.

            – Me dê um bom motivo para acreditar.

            – Que escolha tem, Althorn? Eles já devem estar no seu encalço. Quanto mais demorar para me dar a espada, mais chances você tem de ser pego.

            Althorn esfregou a mão na testa. O desgraçado tinha razão. Se não arriscasse agora, jamais saberia do desfecho.

            Ele deu uma a última olhada no item e depois o estendeu para o anjo Nephael. A sua libertação ou prisão perpétua, depedia agora do celestial.

            – Está certo. Pegue-a – disse. – Espero não me arrepender por isso.

            Nephael segurou o objeto pelo cabo e o recolheu das mãos do demônio. Em seguida, apontou a espada para os céus. De sua boca foi saindo um cântico exasperado, que fez a terra tremer.

            A luminosidade do artefato foi ganhando intensidade. Faíscas amarelas e azuis dançavam ao redor da lâmina enquanto Althorn testemunhava a veracidade da promessa.

            Tão logo as ondas avermelhadas se juntaram às faíscas coloridas, Nephael apontou a espada para Althorn. Um raio chispante ejetou, ultrapassou o bloqueio e o atingiu.

            Ao mesmo tempo em que a luz penetrava seu corpo, Althorn se contorcia. Ouvia os estalos dos ossos se desmontando e remontando, acompanhados pela dor indescritível da metamorfose.

***

 

            Althorn caiu de joelhos. Gritos guturais escapavam de sua boca. Nas veias corria um ácido que queimava cada milímetro dos seus limites. De repente duas asas brancas explodiram às suas costas e um súbito alívio o preencheu de uma vez.

            Ele abriu os olhos. Analisou as mãos, agora tão alvas quanto a neve, e foi se colocando em pé. O esboço de um sorriso se formou ao vislumbrar seu novo apêndice alado.

            – Venha Althorn – Nephael chamou. – Pode sair agora.

            Sem mais demorar-se, encolheu o novo corpo angelical e foi passando pela fenda.

            Mal tivera tempo de se pôr em pé do outro lado. Segurando firmemente a espada de Yahweh, Nephael voou em sua direção. O semblante há pouco terno, transfigurou-se, vertendo a mais profunda cólera.

            – Você achou mesmo que poderia ser um de nós, Althorn?

            Althorn sentiu desconforto com o líquido quente e viscoso a lhe subir pela garganta. Segurou vacilante a espada fincada no tórax e fitou com fúria os olhos de Nephael.

            – Era exatamente para isso que eu ainda precisava de você – o anjo falou exultante. – Não perderia a chance de matá-lo com a única arma capaz de exterminar um anjo!

            Um ódio impetuoso, sem precedentes até mesmo para um demônio, o dominou. As mãos vacilantes, que seguravam a lâmina, agarraram-na com força. Althorn tomou impulso e foi empurrando o traidor, contra o paredão rochoso. Sustentou as mãos no apoio do cabo e o encurralou.

            Com a força de mil demônios, Althorn enterrou o longo cabo da espada de Yahweh no peito do trapaceiro.

            – E você achou mesmo que eu havia acreditado em você? – perguntou, com uma mão pressionando o cabo e a outra o pescoço do inimigo.

            Um fluído avermelhado escapava da ferida do celestial. Junto com ondas de energia, percorria o curto caminho do cabo até a lâmina transpassada em seu oponente.

            – Tudo fora combinado! – Althorn falou entre dentes. – A minha prisão, o rompimento do pacto do equilíbrio, o acordo para ficarmos com a espada... Não era de meu pai que eu queria me vingar! Há muito esperávamos por este momento! Todos nós!

            A carcaça branca de Althorn foi ganhando a tonalidade vermelha. Estava sendo preenchido com o líquido vital de Nephael, bombeado pelas ondas de energia que escapavam do seu corpo. As ondas percorriam o curto trajeto entre o cabo da espada e a lâmina fincada no opositor.

            – E agora, meu caro, quem não tem saída é você!

            Althorn bruscamente se afastou.

            Nephael caiu. Não tinha forças para se levantar tamanho o estrago. Com o peito arrombado e o corpo exangue, só restava esperar que fosse salvo pelos seus irmãos. Eles já chegavam, ocupando o firmamento.

            Althorn retirou a lâmina do próprio tórax, cuja ferida se fechou de imediato. Olhou para os milhares de anjos brancos. Quando soube que não estavam ali para atacar, segurou Nephael pelos cabelos e com a espada sagrada arrancou-lhe a cabeça, erguendo-a a seguir.

            – Vejam! – ele gritou. – Vejam o que restou do nosso algoz!

            Os celestiais menearam as cabeças.

            O anjo vermelho lançou a cabeça de Nephael na fenda da montanha. Uma explosão chacoalhou o solo. A rocha arrebentou arremessando pedras morro abaixo e o bloqueio foi desfeito.

            Feito um vulcão em erupção, a montanha cuspia demônios. Eles preencheram céus e terra em mesmo número dos celestiais.

            – Que o equilíbrio seja restaurado! – Althorn bradou causando um furdunço de contentamento.

            O arcanjo Gabriel se aproximou. Sem nada dizer, Althorn entregou a ele a espada, que deveria voltar para o seu lugar.

            – Este é o final de uma era – Gabriel tomou a palavra. – É a retomada de um tempo onde cada ser humano pode ter o livre arbítrio. Nephael jamais compreendeu que a constante criação e alteração do universo dependem de nossa sintonia. Mas eu não o culpo – baixou o olhar com tristeza e um breve silêncio se fez. – Obviamente viver em um mundo de paz, sem o toque do mal seria magnífico, porém utópico – voltou os olhos para Althorn por alguns instantes. – Nossas interações são energias complementares que se equilibram. Além de tudo o que envolve o cosmos, é deste fluxo energético que também depende o aprimoramento dos homens. Assim foi no princípio e que assim seja para sempre.

            O arcanjo fez um gesto de agradecimento. Althorn retribuiu.

            Assim que Gabriel se retirou, anjos e demônios se dispersaram. Cada um deles tinha funções importantes a cumprir.

            – Ele não quis saber como você roubou a espada tão rapidamente? – Mitrius perguntou ao se aproximar do filho.

            – Não. Talvez tenha pensado que a peguei sem que fosse percebido.

            – Ele jamais desconfiou.

            – É verdade. Jamais desconfiou que nós nos unimos ao seu próprio povo para que fosse banido. Foi uma vingança contra a sua tirania. Uma vingança lenta e dolorosa para todos nós.

            – Certamente. Mas deixemos o passado para trás. Como diria um velho demônio que conheci, para a desgraça da espécie humana, mais uma página se cumpriu!

            – Ah, por favor, não me fale em páginas!

            Ambos riram.

 


segunda-feira, 14 de março de 2022

A Dança da Morte

 

Com o corpo dolorido por conta das amarras e uma ligeira dificuldade para respirar devido à mordaça, lágrimas vertiam, embaçando a visão de Diana. A escuridão e miséria daquele lugar envenenava a sua alma como envenenados estavam os ratos duros e mal cheirosos espalhados pelo chão do galpão. Enquanto o suor escorria pela testa, ela desejava que a vida também se esvaísse, embora fosse inaceitável deixar o mundo de forma tão cruel. Perdera a noção do tempo, além de toda a sua dignidade em consequência dos percalços da vida.

Mantendo as esperanças tão esmigalhadas quanto os ossos de sua mão esquerda, quebrados com uma marreta no dia anterior pelo garoto de olhos malignos encostado ao batente da porta a observá-la, Diana era acometida, mais uma vez, pelo pânico devastador da tortura iminente. Começou a grunhir e a debater-se em desespero, utilizando o resto de suas forças já há muito exauridas, numa tentativa de chamar a atenção. Gostaria de ter a chance de falar, de se desculpar, de fazer o que fosse preciso para voltar para casa, ou quem sabe de implorar que ele a matasse de uma vez.

Ao escutar os passos de Verônica, Henrique torceu a cintura e olhou para trás, voltando à posição anterior de imediato sem cumprimentar a cúmplice. De braços cruzados, ele observava a refém com olhos impiedosos e sem sentir remorso algum.

Verônica conhecia a frieza do amigo e por não compartilhar dela, sofria. Momentos antes, enquanto vestia as calças jeans bem justas e botas boas para qualquer terreno, o coração pulsava de ansiedade e o corpo esbelto tremia de nervosismo. Ela era capaz de colocar-se no lugar da outra e embora soubesse estar metida na maior encrenca de sua vida, precisava manter o combinado, ou então, os seus demônios internos seriam fadas cor-de-rosa perto do que aconteceria a ela pelas mãos de Henrique. Ele era perigoso, sádico, psicopata, entretanto, ela não tinha mais ninguém e ficar ao lado dele parecia sua única opção.

Olhou-se num pedaço de espelho no banheiro e passou o batom sem pressa, último retoque da maquiagem carregada, típica dos jovens que gostam de rock. Puxou algumas mechas do cabelo vermelho para trás, atando-as com uma presilha de caveira roubada em uma feira livre. Fechou o zíper da jaqueta de couro apertada que um dia pertencera a uma jovem distraída e verificou as horas. Preocupada com o atraso de Henrique, olhou pela janela e o viu chegando, atravessando o quintal e indo direto para o galpão. Mil vezes ela pensou em libertar a moça e fugir para longe, mas o medo das consequências a impediu. Tudo o que ela fez durante a ausência dele foi evitar descer as escadas da casa abandonada onde morava há duas semanas. Pegou a bolsa e foi encontrá-lo.

– Podemos dar um pouco d’água a ela? – a voz empastada de Verônica o enjoou.

A resposta veio através de um olhar de esguelha, clara negativa à pergunta. O cheiro pútrido dos bichos mortos misturado aos excrementos da refém invadiu suas narinas, fazendo subir um gosto azedo pela garganta, obrigando-a a controlar-se para não botar para fora a refeição daquele dia.

Ambos ficaram ali parados em silêncio, limitando-se a assistirem a dança convulsa do resquício do ser humano atado à cadeira. Quando um cúmplice olhar foi trocado, eles fecharam a porta do galpão, deixando Diana tão sozinha quanto estão os mortos em um cemitério à noite.

Escutando os caminhões a enviarem seu ruído, Diana imaginou estar perto de alguma rodovia. Se pelo menos pudesse se soltar... Talvez se a mão não estivesse tão arrebentada causando fortes dores, conseguisse movê-la um pouco. Mas só de mexer os braços presos às costas, seu corpo todo era abordado pela mais intensa agonia já experimentada. Então ela aquietou-se. Era inocente. Não havia pegado a joia à qual a acusavam, mas eles deviam ter percebido. Ninguém estaria disposto a levar marretadas caso houvesse qualquer outra opção. Chegou a inventar uma história, a confessar o roubo na hora do desespero. Não foi uma ideia muito inteligente, pois após verificarem e descobrirem a sua mentira, ela teve o seu castigo por meio de mais golpes.

À mercê das torturas cruéis do casal durante três intermináveis dias, ela agora inalava o cheiro da morte, imaginava quanto tempo levaria para que ficasse dura feito aqueles ratos.

Assistiu a tarde se despedindo pela janela de vidros quebrados e sujos à frente, onde a paisagem mais reconfortante consistia numa árvore morta erguendo suas garras para o crepúsculo arroxeado.

 

***

 

Uma garrafa de cerveja atrás da outra era aberta pelo barman a cinco quarteirões dali. O local apinhado de jovens e adultos ansiosos pelo início do show da banda inglesa, com seu palco já montado e equipamentos devidamente testados, recebia o início da noite com o entusiasmo estampado em cada rosto.

Era dia treze de julho, data importante, e embora a banda estivesse feliz por celebrar o dia mundial do rock no Brasil, onde eram sempre bem recebidos e muito idolatrados, havia uma ponta de inquietação em cada integrante, mas ninguém além deles próprios saberia o por quê. Há muitos anos eles não se apresentavam neste dia. Faziam questão de resguardar a data por conta de um pacto selado nas entranhas de um celeiro no interior da Inglaterra, quando lá se reuniam para tocar sem plateia alguma, numa época em que não passavam de garotos anônimos, sem perspectivas de sucesso em razão de sua falta de talento. E isso faz mais de trinta anos, quando as lendas da região eram contadas pelos mais velhos em torno de fogueiras, aquecendo as tardes de inverno dos moradores locais e alimentando a imaginação dos mais jovens.

Eles diziam residir sobre o solo onde outrora um caçador de demônios aprisionou uma criatura que costumava matar os animais das fazendas; uma espécie de humanoide com o corpo esquálido e enegrecido, olhos vermelhos, dentes e garras afiados o bastante para rasgar o gado ao meio com apenas um golpe e se alimentar de dezenas deles numa noite, aproveitando toda a carne, de modo que os ossos e peles limpos ficavam espalhados pelo tapete verde de grama feito presentes prontos para o embrulho.

A primeira prisão à qual a criatura foi lacrada consistia numa espécie de jaula. Através de armadilhas dispostas nas redondezas, o tal caçador conseguiu capturá-la e por este motivo, as pessoas puderam vê-la. Assustadas demais com a sua aparência horrenda, acharam melhor matá-la de uma vez e a jaula foi então atirada ao rio. Embora todos pensassem que o monstro havia se afogado, ele acabou retornando dias depois e com muita ira, deixou os animais de lado e passou a aplacar a fome com a carne dos moradores.

Diante do caos instalado, deixaram suas crenças religiosas de lado e aceitaram a sugestão do caçador. Desta forma, uma velha bruxa do leste foi trazida para auxiliar na segunda captura. Ela assegurou que a criatura não poderia morrer e a única maneira de detê-la, seria aprisioná-la por meio de encantamentos. O que ninguém esperava, era que o monstro fosse tão poderoso a ponto de fundir seu corpo com o do caçador quando este se encontrava vulnerável. Ninguém sabe ao certo os motivos que o levaram a fazê-lo, mas de acordo com as explicações da bruxa, a criatura havia falhado na tentativa de se esconder no corpo físico do outro. Enquanto alguns testemunhavam a metamorfose daquele que deveria ser o salvador do povo, outros não pensaram duas vezes antes de atacá-lo com tiros e lanças, deixando o então metade homem, metade demônio imobilizado e aparentemente morto.

Um ritual foi feito antes que o enterrassem a muitos metros abaixo do solo, lacrando além do corpo disforme, os dois espíritos que nele habitavam. Infelizmente a alma do caçador não teria chances de escapar e ambos estariam fadados a compartilhar a eternidade nas profundezas daquela terra fria e úmida.

Muitos séculos depois, emergiu das entranhas da terra o demônio-caçador, desperto pela música dos jovens que tocavam no celeiro erguido bem acima de sua tumba.

A figura foi se aproximando aos poucos. A princípio era apenas uma voz prometendo a eles fama e sucesso. Depois da amizade consolidada, o demônio se mostrou e passou a ajudá-los com a realização de seus sonhos. Em troca, pedia animais grandes e suculentos para saciar a fome. Concordando e cumprindo com o acordo todos os dias, como num passe de mágica, o talento brotou entre os garotos. Encantados com a promessa de serem reconhecidos mundialmente, os jovens o adotaram como mascote da banda, estampando sua imagem nas capas dos discos. Não tardou para degustarem o estrelato esperado. Porém, o encantamento da bruxa impedia a criatura de deixar as redondezas. Exceto num único dia do ano; no dia em que fora aprisionada por ela tempos atrás; treze de julho, data importante para os moradores daquele povoado inglês.

Eddie, o nome dado ao bom-demônio com poderes de fada madrinha, estava com eles desta vez. Escondido no meio da aparelhagem, aguardava os primeiros acordes da banda, ansioso para explorar a terra brasileira. Ele teria três horas para isso, enquanto durasse o show estaria livre para fazer o que quisesse. E quando a última nota fosse tocada, seria sugado de volta ao celeiro feito poeira engolida por aspirador.

A inquietação dos músicos, se dava por conta da ânsia do mascote por se alimentar. Antes da viagem, foram providenciadas vinte cabeças de gado, as quais ele saboreou sem desperdícios. Ainda assim, da última vez em que tocaram no dia da liberdade de Eddie, na Argentina, os restos mortais de uma pessoa foram encontrados próximos ao local do show e desde então, eles evitavam se apresentar na data em questão.

Entretanto desta vez, não foi possível cancelar. O novo empresário do grupo programara tudo sem saber das ressalvas da banda e depois dos ingressos todos vendidos, desistir significava prejuízos incalculáveis, aos quais eles não poderiam nem pensar em arcar, mesmo que isso custasse a vida de alguém. Mas Eddie prometera comportar-se e todos contavam muito com isso.

Pouco depois da hora marcada para o início do show, os telões gigantes dispostos do lado esquerdo e direito do palco começaram a exibir as imagens de um avião se desvencilhando de galhos negros numa floresta e em seguida decolando num céu avermelhado. Fogos artificiais explodiram no mesmo instante em que os primeiros acordes soaram. Uma criatura enegrecida, esquálida e de olhos rubi materializou-se no palco e de um pulo ganhou o céu noturno, desaparecendo sob o efeito fantástico de um possível holograma.

 

***

 

Henrique e Verônica haviam perdido a abertura do show. A bem da verdade, eles não tinham a intenção de ir, apesar de terem conseguido roubar os ingressos de um cambista dias antes. Vestiram-se à caráter para que pudessem despistar suas reais intenções, misturando-se facilmente aos outros jovens próximos ao local do evento enquanto aguardavam escondidos sob a penumbra de uma esquina a entrega do resgate por um familiar da refém, com quem haviam combinado tudo.

Com o dinheiro a ser recebido, pretendiam deixar o país e começar vida nova, longe da pobreza que os cercava desde o seu nascimento e por fim poderiam estudar e trabalhar, abandonando a vida de pequenos crimes e furtos.

A história sobre o roubo da joia valiosa era mentira. Mera desculpa para poder torturar a moça, algo que a mente doentia de Henrique sempre planejou fazer. Uma vez que Diana saía de uma loja de joias ao ser capturada, a ideia havia surgido. Fora escolhida a dedo. Tinha cara de mulher rica, trajava roupas caras, inclusive as botas que Verônica usava agora. Ela estava prestes a entrar em seu carro de milionária quando eles a abordaram com uma faca e a levaram dali.

Enquanto o atraso da pessoa responsável pelo pagamento os deixava com o coração pulsando acelerado, no galpão a cabeça de Diana latejava. Teria ficado inconsciente se não fosse o ruído ritmado que a despertara. Ela lamentou por isso, queria estar morta, nunca havia se dado conta de que morrer era tão difícil. A dor na mão era pungente, insuportável. Então foi tomando consciência da situação aos poucos e não havia meios de refrear o pânico subindo pelo corpo e engolindo cada célula com impulsiva inclemência ao passo que a música barulhenta violentava ainda mais os seus nervos.

A árvore do lado de fora, agora iluminada pela lua pálida, parecia uma figura monstruosa retorcida, e talvez por conta da febre, Diana delirava, achando ver grudada nela uma criatura ossuda, de mesma tonalidade do tronco seco, com faces malignas e olhos vermelhos.

À princípio, o suave movimento do monstro imaginário era confundido com o soprar do vento abalando os galhos mais finos da árvore, como se a morte fosse capaz de dançar. Depois foi adquirindo uma forma definida, ao passo que se afastava do tronco e se posicionava na ponta de um ramo, envergando-o com seu peso sem desviar os olhos rubi da refém. O luar derramava seu brilho sobre a criatura, contornando-a com o halo típico dos anjos. Enfim, a morte esquecera o seu capuz e a sua foice. Exibia-se desnuda, torta e horrível. Diana estava prestes a encontrá-la, a receber o beijo derradeiro de libertação ou de expiação eterna. Chorou quando o ser abandonou o seu suporte de um pulo e adentrou o galpão pelo buraco do vidro da janela.

De olhos arregalados, ela acompanhou a criatura se aproximando. Eddie parou diante dela e a fitou com os rubis acesos. Examinou-a friamente, cheirou-a, mas o beijo não veio por conta da mordaça. Então ele ergueu-se e inalou o ar empesteado de morte, como se através do olfato, pudesse conhecer a história por trás daquela cena.

Diana gemeu e a criatura voltou-se, apavorando-a. Esperava ser aniquilada, mas em vez disso, o monstro foi se afastando e deixou o galpão pela mesma fresta que entrara. Grudou na árvore e girou a cabeça aspirando a noite, absorvendo sua história.

A refém fechou os olhos, pensando que conhecera o terror, a perda e o caos. Talvez já estivesse morta, não podia ter certeza. Contudo, as pálpebras se ergueram e não havia monstro algum, apenas a árvore seca a sua frente, como sempre estivera. No limite entre o real e o imaginário, ela atribuíra à morte nova face. E se não fora levada ainda, em que momento seria? No fundo, tinha a consciência de estar exposta a um perigo mais palpável. Ele era físico e vinha da maldade do rapaz e da moça. Ainda assim, aqueles olhos sobrenaturais que achou ter visto carregavam um significado urgente e medonho o qual ela não estava em condições de decifrar.

 

***

 

 

A SUV prata estacionou a um quarteirão de distância dos jovens. Dela saltou um homem alto, trajado com roupas escuras e formais. Henrique soube que ele era o responsável pelo pagamento quando, antes de fechar a porta dianteira, um saco de lixo preto foi puxado. Cutucou Verônica.

– Aí vem ele – avisou, empolgado.

– O que vocês combinaram? Nós não trouxemos a mulher para a troca, então...

– Cala a boca! Primeiro a grana, sua burrinha! Quando estivermos bem longe daqui, ele vai saber onde encontrá-la.

Verônica calou-se. Ela não estava confiante de que tudo seria assim, tão fácil. Ser chamada de burrinha era o menor de seus problemas. Talvez ela fosse mesmo uma, se permitindo ir tão longe numa enrascada dessas. Olhava ao redor a espera de diversos carros de polícia e já se imaginava algemada, pronta para apodrecer atrás das grades. Tremia como nunca ao passo que o homem atravessava rua e depositava o saco na lixeira combinada.

A música da banda ecoava pelos arredores, tinha agora uma parte suave e lenta; um instrumental com guitarra e baixo, espalhando a sonoridade típica de um bom filme de terror. Quando a voz grave e afinada acompanhou a melodia e a história começou a ser contada, o ritmo acelerou, a bateria destacou-se frenética e passou a remeter à marcha de soldados medievais se preparando para a derradeira batalha.

De repente, Verônica sentiu a coragem apossar-se dela, como se a canção a motivasse fazer o que achava certo.

O homem entrou no carro e partiu, conforme o acordo. Esperaria a ligação de Henrique revelando o local onde a mulher estava.

O rapaz a puxou:

– Vamos verificar o conteúdo do saco – ele disse, mas Verônica desvencilhou-se das mãos em seu braço e iniciou uma corrida desabalada rua acima, no sentido oposto.

Ela não queria mais fazer parte daquilo, talvez houvesse tempo para se salvar, para denunciar o outro e libertar a refém. Não queria o dinheiro, não queria ter que viver com a consciência pesada, não passaria o resto de seus dias na cadeia. Subitamente acordava de um pesadelo. Como podia ter se deixado levar de tal maneira? O que estavam fazendo era bem diferente de furtar relógios ou potes de margarina no supermercado. Era bastante grave. E mesmo que desse certo, mesmo que ninguém os prendesse e eles conseguissem realizar com sucesso o seu plano, ela não queria mais passar a vida com Henrique. Ele a mataria cedo ou tarde por conta de sua personalidade torpe. Esmagaria sua mão e engoliria a sua dignidade como fizera com a moça no galpão. Então ela correu e correu sem destino certo, só pensando em se afastar. Em fugir dele, sumir.

Ele, carregando o ódio no olhar e dimanando feito tigre atrás da presa, mal podia acreditar. Estava tão perto do dinheiro. Maldita, filha da puta! Deixá-la fugir significava ser denunciado.

No momento em que a alcançava, emputecido por conta da atitude e disposto a matá-la se fosse preciso, Eddie se aproximava, atraído pelo odor dos dois; o cheiro da maldade peculiar dos demônios, o mesmo inalado momentos antes no galpão e que o levara até ali. Observando-os escondido, teve certeza. O rapaz carregava a essência soturna das entidades malignas. Identificou-se de pronto; certa vez fora como ele, ávido por sangue, sofrimento e morte. Entretanto, carregando o espírito justo do caçador no ser em que se transformara após o encantamento da bruxa, era capaz de discernir o bem do mal, embora o segundo ainda fosse mais latente em sua natureza.

Mais cedo, quando o pânico da mulher amordaçada o levou até aquele lugar, ele pretendia acabar com o seu sofrimento e o teria feito caso não houvesse sentido o cheiro de uma aventura mais interessante. Estava bem diante dela agora. A sua aventura alcançava a moça fujona. Ambos caíram e rolaram no chão.

– O que deu em você? – gritou o rapaz, sendo esmurrado e repelido por Verônica.

Antes que ela respondesse alguma coisa, ouviu um estalo, como o de ossos quebrando e os braços fortes de Henrique se afrouxaram em volta de seu corpo. Sobre os ombros do rapaz acima dela surgiu uma cabeça de osso e pele mumificada, olhos vermelhos brilhantes e boca escancarada numa risada silenciosa. Não tendo compaixão de seu arrependimento, Eddie afundou a mão ossuda em seu crânio, arrancando os olhos bonitos e atônitos. Jogou-os na rua. Depois, agarrou os dois corpos e sumiu para o mato, desmembrando-os, formando uma pequena montanha de braços, pernas, pés, mãos, tripas e órgãos.

Com cuidado e precisão, foi depositando os restos mortais de Henrique e Verônica pela mata, formando um caminho sangrento até o galpão.

Arremessou a cabeça do algoz aos pés da refém e sorriu a vê-la desmaiar.

O demônio deixou o local e seguiu para o show. Pousou numa torre de iluminação e apreciou algumas músicas dos seus garotos. Fãs apontaram para ele, como se fosse um efeito especial surpresa da banda. Sorte deles não estar com fome hoje. Prometeu que não iria comer ninguém e satisfeito com a sua honestidade, retornou ao seu celeiro de origem assim que o último acorde foi tocado.

Antes que a madrugada se instalasse, a polícia foi acionada por alguém. Não é comum chutar um olho, sem querer, no meio da rua. Foi assim que descobriram sobre os crimes.

Num primeiro momento, não foi possível saber quantas pessoas haviam sido desmembradas, mas logo supuseram ser duas. Enquanto recolhiam os pedaços, percorrendo o caminho, discutiam a possibilidade de um ataque animal, ainda que jamais houvessem visto algo parecido. Escondidos pela mata, a casa abandonada e o galpão logo se fizeram notar. O barulho dos carros e caminhões da rodovia próxima era o único som audível agora que a banda havia encerrado a apresentação perto dali.

A refém foi encontrada com a cabeça de Henrique aos seus pés. O dinheiro de sua família também foi recuperado. Era uma data importante, a data em que Diana renascia.

Após diversos dias de internação hospitalar e cirurgias, ela parecia estar melhor. Entretanto, ao ser perguntada sobre o que aconteceu, Diana apenas se lembrava de uma música, a qual cantava com olhos vazios e distantes:

 

“Let me tell you a story to chill the bones

About a thing that I saw

One night wandering in the everglades

I'd one drink but no more

 

I was rambling, enjoying the bright moonlight

Gazing up at the stars

Not aware of a presence so near to me

Watching my every move

 

Feeling scared and I fell to my knees

As something rushed me from the trees

Took me to an unholy place

And that is where I fell from grace...”

Iron Maiden – Dance of death

 


Respeite os Direitos Autorais. Todos os textos deste blog estão registrados.