Sobre o mármore empoeirado jaz um livro
aberto. Atrás das teias de aranha, o anjo de nanquim ergue a espada acima da
cabeça ansiando atingir o demônio que com ele divide aquele espaço.
Althorn ri. Uma risada amarga e
resignada. A mão fantasma cujos esforços para virar a página já se esgotaram,
agora pousaria no queixo, se ao menos pudesse tocá-lo.
A prisão de pedras só poderia ser
aberta caso pronunciasse as palavras da folha seguinte. Há quanto tempo? Já não
sabe mais. O tempo dos vivos e dos mortos corre distinto, mas é evidente, mesmo
para uma mente deturpada, que o encerramento é longo. Secular talvez.
O ódio emana intenso. Ainda que a
eternidade o engula, as lembranças estarão sempre frescas, estimulando a
crescente sede de vingança realçada pelo inexecutável plano de escapar.
Havia, porém, a ínfima possibilidade
da fortaleza de pedras ser encontrada e aberta por mãos humanas. Mas este feito
parecia-lhe tão improvável quanto virar a página do livro. O tempo deveria ter
se encarregado de esconder a construção nas entranhas daquelas terras
longínquas...
Althorn olha novamente para Nephael,
o anjo eternizado duelando com o seu pai. Este último, ao contrário da figura
alusiva, vencera o celestial, que por sua vez planejara a vingança contra o
grande Mitrius encerrando o seu único filho no interior daquela fortificação.
– Vou deixar algo para que se lembre
– Nephael falou abrindo o livro sobre o mármore. – Basta que vire a página e
pronuncie as palavras da sua libertação.
– O meu pai virá por mim.
– Se acredita que ele se importa,
então eu faço votos para que mantenha as esperanças.
Inesquecível o sorriso de escárnio
que o maldito anjo abriu antes de partir. Mitrius jamais viera e tudo o que
tinha de seu pai era a maldita imagem...
Tão perdido nas impossibilidades de
realizar o que mais almeja, nem se deu conta do barulho vindo de fora.
A primeira marretada contra a parede
de pedras soou como um leve estampido, parecendo vir de dentro da sua mente. Os
golpes não foram compreendidos de pronto. Somente quando a luz do dia penetrou
pela primeira fresta, Althorn entendeu.
O clarão vindo de fora o devolvia o
vigor. Ele riu. Mas desta vez, uma risada de satisfação substituiu milhares de
outras que outrora escapavam devido ao desespero.
Analisou minuciosamente cada um dos
seus salvadores. Eram três homens fortes e um mais esguio. Os que golpearam a
parede estavam ofegantes. Pararam para descansar enquanto o mais mirrado
observava o salão e suas relíquias. Com passos lentos ele foi entrando,
afastando as teias de aranha e admirando tudo ao redor.
Althorn apressou-se para a saída.
Estava livre! Finalmente livre!
– Agora ele me paga! – falou entre
dentes.
***
Nem sinal de Mitrius ou dos demônios
que o serviam. O mundo parecia-lhe pacífico demais. Algo estava errado. Althorn
teve a impressão de estar no meio de uma tela pintada a óleo. Ou a crosta
rebelde fora recoberta por uma grossa camada de tinta, ou os celestiais haviam
tomado todo o território...
Alguns brancos sobrevoavam pelas
cidades, enquanto outros apenas observavam a humanidade nos topos dos prédios,
pousados feito pombas inúteis, desprovidos de qualquer preocupação ou medo.
Ao passo que Althorn analisava as
circunstâncias mais profundamente, sua presença fora notada e antes que pudesse
perceber, uma enorme legião cândida o circundou.
Não há como fugir. Eles são muitos.
Se não for capaz de ser astuto agora, acabará voltando para a prisão. Tinha que
pensar em algo, e bem rápido. O cerco estava se fechando. Enquanto Althorn
cogitava dizer algo inteligente, os anjos se aproximavam mais e mais.
A demasiada confusão que afetava o
intelecto, o impedia de pensar. Se ao menos houvesse previsto tal situação,
teria tido o tempo que agora é escasso.
– Eu... – ele falou mesmo não
sabendo ao certo o que dizer. – Ordeno que me ouçam!
Mas a tentativa não surtiu efeito
algum. Os celestiais não interromperam a sua marcha para ouvi-lo. O jeito era
lutar. Mesmo estando ciente de uma provável derrota, não desistiria tão fácil.
Então, por algum motivo além de sua
compreensão, uma voz se destacou no meio do bando alvo:
– Não o ataquem!
A pouco mais de meio metro adiante,
Althorn vislumbrou o mar de anjos estacar. Um corredor à sua esquerda se abriu.
– Esse aí é meu! – Nephael bradou
com displicência.
“Ah, mas que ótimo... ser salvo pelo
meu algoz”, pensou.
– Agora vão! Retomem seus postos, se
dispersem, saiam daqui! Tenho assuntos a tratar com o demônio.
Os anjos se afastaram com hesitação.
Retomaram seus postos nos prédios, desta vez, feito aves de rapina, prontos
para atacar ao primeiro deslize.
***
– Imagino que esteja confuso – o
riso escarnecido, típico de Nephael acompanhava as palavras.
– O que está havendo por aqui,
Nephael? Onde estão os demônios?
– Houve um acordo. Seus semelhantes
aceitaram se recolher no submundo em troca da espada de Yahweh.
– Mas o porquê deste acordo se meu pai
já a havia tomado de você?
– Nós a recuperamos. E esta foi a
nossa perdição. O mundo virou um caos. O pacto de equilíbrio foi rompido e tudo
o que restou foi morte e destruição...
Althorn gargalhou.
– E agora que estou livre, a sua
intenção é me atirar no submundo, certo? Deixe-me adivinhar... Você quer me
convencer a juntar-me a eles e caso eu me negue, seus urubus brancos darão um
jeito de me castigar, correto?
– Errado. Existem mais coisas em
nosso acordo. Nós não podemos entrar no submundo e nem eles virem para a
superfície. Eu sei da raiva que guarda por seu pai nunca ter ido te libertar,
Althorn.
– Sim. É uma raiva imensa...
– Eu ofereço a oportunidade de
vingar-se dele.
– Ah... Você oferece? – o demônio
riu. – Os celestiais são mesmo lobos disfarçados de cordeiros...
– Não está em condições de zombar de
nós. Eu não o trouxe até aqui sem nenhum propósito...
– Então foi você quem enviou aqueles
homens para que eu saísse...
– De que outra forma sairia? Virando
a página do livro? – foi a vez de o anjo rir.
– Estou ouvindo, Nephael. Diga logo
o que quer e pare de acentuar ainda mais o ódio que eu tenho por você.
– Assim está melhor. Vejo que a
inteligência não o abandonou.
Althorn transbordava ira. Fitava o
anjo com um olhar mortífero e feroz.
– Tenha calma, Althorn. Desculpe-me pelas
ironias. Eu as acabo lançando sem intenção, às vezes.
– Você é um mau caráter!
– O que não me difere muito de você,
não é mesmo? A diferença entre nós é que... Bem, deixemos isso de lado... O que
importa agora é que você recupere a espada de Yahweh e a traga novamente à
superfície.
– E por que a quer de volta?
– Assuntos cósmicos... Que não dizem
respeito a você.
– E depois que a tiver, o que eu
ganho com isso? O que eu ganho ao trair meu pai e meus semelhantes?
– Trair seu pai? Mitrius o traiu bem antes. É a sua chance de
vingar-se dele. E como recompensa eu te darei um corpo. Precisará dele para
pegar a espada. E assim que voltar poderá juntar-se a nós. Poderá ser um de
nós.
– Isso me parece destoante. Um
demônio não pode se tornar um anjo. É contra as leis.
– As únicas leis que restaram são
aquelas que eu faço.
– Você é mesmo um canalha! Está
passando por cima dos arcanjos, pelo que entendi.
– Os arcanjos estão ocupados demais
para atentar às coisas mundanas. O que houve com você, Althorn? O confinamento
o fez se arrepender pelos seus crimes? Você ficou bonzinho ou o quê?
– Não. Eu não me arrependo de nada
do que fiz. Só não gosto de ser usado, como está fazendo agora.
– Tsc, tsc, tsc... Não, não, não...
Não é bom que veja as coisas por este lado. É apenas uma troca de favores. Eu
saio ganhando e você também sai ganhando.
– Que outra escolha eu tenho?
– Esta é uma pergunta desnecessária.
Você já sabe a resposta.
– Digamos que eu recuse...
– Neste caso, será contemplado com
mais um longo período de reclusão. Eu compreenderei se preferir ficar a sós
consigo mesmo pagando as mesmas penitências dignas dos fracos.
– Sabe Nephael, você me enoja. Mas
devo admitir que os benefícios oferecidos me parecem razoáveis. Espero que
possamos negociar sobre a minha aparência, pois me embrulha o estômago pensar
em adquirir uma forma tão genuinamente afeminada quanto a sua.
O anjo gargalhou.
– Obrigada pela parte que me toca,
mas sabe que não poderá permanecer na superfície com este seu aspecto genuinamente grotesco.
– Diga-me com sinceridade, se é que
tem alguma. Além de você, quantos anjos mascarados existem por aqui, hã?
– Em primeiro lugar, eu não vivo de
máscaras, e em segundo, eu não precisaria dos seus préstimos caso houvesse sob
o meu comando algum demônio disfarçado. Pela última vez, é pegar ou largar!
– Está certo. Eu vou buscar a
maldita espada. Pensando bem, até que vai ser divertido.
– Muito sábio de sua parte, meu
caro.
– Você não acha que vai ser
divertido, Nephael? Hein? Eu ficar no meio de vocês fingindo ser um anjo, mesmo
com todo o mal que eu desejo fazer, em especial a você?
– As suas intenções serão
revertidas, meu caro. Vai ficar bonzinho feito um gato castrado.
– Pago para ver!
– Esta conversa já se estendeu
demais. Vamos até o reformatório para que receba o corpo e eu te passe as
instruções finais.
– Como quiser.
– Mas saiba – apontou o dedo longo
na cara do demônio –, que se sonhar em me ludibriar, estará assinando a sua
sentença de morte.
Althorn estreitou os olhos e Nephael
continuou:
– Não se esqueça de que ao ter um corpo, eu
posso facilmente mandá-lo para o Tártaro, de onde nenhuma criatura jamais pôde
escapar.
– Tirano! – Althorn satirizou.
– Chega de elogios. Vamos logo ao
que interessa!
***
Na base de uma montanha rochosa, a
fenda camuflada por pedregulhos, era o que chamavam de bloqueio. Nome fácil de
compreender, visto que nenhum anjo pode por ela entrar e nenhum demônio por ela
sair.
– Mas se nenhum demônio pode sair,
como vou trazer a espada? – Althorn questionou.
– Você faz perguntas cujas respostas
já lhe foram dadas. Eu não disse que seria um de nós? Então! – Nephael falava
com impaciência. – Assim que retornar, ao estar do outro lado do bloqueio, me
passará a espada sagrada pela fenda. Feito isso, eu o transformarei em um
celestial e poderá passar.
– Não subestime a minha inteligência,
Nephael. Por quais motivos acha que eu seria tão tolo a ponto de acreditar numa
besteira dessas? Primeiro você vai me transformar e só então eu te darei a
espada.
– Infelizmente isso não será
possível. A sua tolice é evidente ao
pensar que tenho o poder de transformá-lo com as minhas próprias mãos. Sem a
espada de Yahweh este feito é impossível.
– Mais uma vez me deixando sem
escolhas... Muito esperto...
– Vá, Althorn. Faça o que tem que
fazer. Estarei aqui a sua espera.
Com cara de poucos amigos, Althorn
levou os dedos até a lateral da testa, jogando-os para frente a seguir.
Estranhou um pouco por poder tocar-se. Há muito tempo o tato lhe fora roubado e
enquanto se espremia para entrar na abertura da montanha, divertia-se com os
arranhões das pedras.
O breu que dominava o interior era
mais denso do que a escuridão de seu antigo claustro. Lá ele ainda conseguia
enxergar, mesmo que parcamente, o livro sobre o mármore e a brancura das teias
de aranha. As pedras disformes permitiam a entrada de alguma luz pelas suas
frestas, diferentemente daquele lugar novo, onde até o ar – se é que havia
algum – parecia-lhe ser negro.
Althorn foi dando um passo atrás do
outro bem devagar. Sentia fisgadas nos pés por causa das pedrinhas. Uma
sensação indescritível, longe de ser dolorosa. A única dor que o incomodava era
a dor de ter sido abandonado por seu pai.
– Oh... Eu fui vilipendiado – ele
falou quase cantando. O eco negro o fez rir.
Sentiu que o chão havia se tornado
íngreme e descendo agora ele ia rindo e cantando frases jocosas a respeito de
seu ódio e sede de vingança.
A descida foi ficando cada vez mais
inclinada. Um passo em falso o fez cair num buraco invisível. Batendo e
rebatendo nas pedras ele foi rolando e rolando e caindo e caindo... O tato já
não lhe parecia tão agradável.
Uma superfície reta por fim o
aparou.
Althorn tirou a cara do chão com
dificuldade. Levantando os olhos, avistou uma afastada abertura. O clarão
chamejante vindo de trás do portal do submundo, agora o permitia ver o restante
da trilha que o levaria à vingança.
***
Uma dúzia de demônios feios e raivosos
coagia o desastrado Althorn com as pontas de suas lanças estiradas ao redor do
corpo novo.
Maldita hora que chegou tentando não
fazer alarde. Assim que ultrapassou o portal do submundo, esbarrou em uma pedra
que rolou fazendo estrondo. Ainda não houvers tempo para se acostumar a tocar
coisas. Seria complicado perder certas
manias depois de quase um século em forma espectral.
– Vim falar com Mitrius, onde ele
está?
– Quem é você e o que quer?
– Afastem-se! – a voz de Mitrius
ordenou.
Os demônios baixaram suas lanças e
deram dois passos para trás.
Mitrius passou por eles se
aproximando daquela criatura estranha que ali aparecera.
– De que é um demônio, não tenho
dúvidas – ele falou analisando Althorn da cabeça aos pés.
– Sim – Althorn respondeu. – De que
outra maneira eu poderia entrar aqui?
Mitrius arregalou os olhos. De
pronto, reconheceu aquela voz rouca e arrastada.
– Althorn?
– Mitrius... Quanto tempo, não é
mesmo?
– Há, há! É Althorn! – ele gritou. –
Althorn regressou! Abram caminho seus dementes! – passou o braço pelos ombros
do filho. – Venha Althorn, temos muito o que falar!
– É. Pode apostar que sim.
***
Ofegante e com passos rápidos e
trôpegos, Althorn subia em direção à superfície. A pesada espada de Yahweh já
estava em seu poder.
Ele olhava sobre os ombros,
assustado. Continuava sua marcha, ora correndo, ora escalando as rochas.
A espada luminosa auxiliava a visão.
O trajeto, mais cedo percorrido no mais profundo breu, agora podia ser
observado. Era uma caverna larga, sem extremidades visíveis.
Perguntava-se como podia ter descido
tão rapidamente. Agora o covil parecia não ter fim.
Era pouco provável que Nephael
cumprisse com a promessa, mas precisava manter as esperanças. Não havia como
retornar. Voltar com o rabo entre as pernas e encarar Mitrius e seus demônios
depois de tudo, não estava em seus planos. Seria crucificado por toda a
eternidade.
E eis que ela surgiu. A fenda, agora
desprovida das pedras que a encobriam, jogava para dentro alguma iluminação.
Althorn parou diante dela e viu o anjo do outro lado.
Esticou os dedos para constatar que
estava preso. Uma parede invisível bloqueava a saída. Ensandecido, começou a
desferir murros e golpes inúteis contra a barreira.
Nephael se aproximou.
– Tenha calma, Althorn. Confie em
mim. Passe-me a espada.
– Você não vai me tirar daqui. Não
tente me enganar. Vai me deixar entregue à desgraça.
– Não. Eu cumprirei com a minha
promessa. Ainda preciso de você.
– Me dê um bom motivo para
acreditar.
– Que escolha tem, Althorn? Eles já
devem estar no seu encalço. Quanto mais demorar para me dar a espada, mais
chances você tem de ser pego.
Althorn esfregou a mão na testa. O
desgraçado tinha razão. Se não arriscasse agora, jamais saberia do desfecho.
Ele deu uma a última olhada no item
e depois o estendeu para o anjo Nephael. A sua libertação ou prisão perpétua,
depedia agora do celestial.
– Está certo. Pegue-a – disse. –
Espero não me arrepender por isso.
Nephael segurou o objeto pelo cabo e
o recolheu das mãos do demônio. Em seguida, apontou a espada para os céus. De
sua boca foi saindo um cântico exasperado, que fez a terra tremer.
A luminosidade do artefato foi
ganhando intensidade. Faíscas amarelas e azuis dançavam ao redor da lâmina
enquanto Althorn testemunhava a veracidade da promessa.
Tão logo as ondas avermelhadas se
juntaram às faíscas coloridas, Nephael apontou a espada para Althorn. Um raio
chispante ejetou, ultrapassou o bloqueio e o atingiu.
Ao mesmo tempo em que a luz
penetrava seu corpo, Althorn se contorcia. Ouvia os estalos dos ossos se
desmontando e remontando, acompanhados pela dor indescritível da metamorfose.
***
Althorn caiu de joelhos. Gritos
guturais escapavam de sua boca. Nas veias corria um ácido que queimava cada
milímetro dos seus limites. De repente duas asas brancas explodiram às suas
costas e um súbito alívio o preencheu de uma vez.
Ele abriu os olhos. Analisou as
mãos, agora tão alvas quanto a neve, e foi se colocando em pé. O esboço de um
sorriso se formou ao vislumbrar seu novo apêndice alado.
– Venha Althorn – Nephael chamou. –
Pode sair agora.
Sem mais demorar-se, encolheu o novo
corpo angelical e foi passando pela fenda.
Mal tivera tempo de se pôr em pé do
outro lado. Segurando firmemente a espada de Yahweh, Nephael voou em sua
direção. O semblante há pouco terno, transfigurou-se, vertendo a mais profunda
cólera.
– Você achou mesmo que poderia ser
um de nós, Althorn?
Althorn sentiu desconforto com o
líquido quente e viscoso a lhe subir pela garganta. Segurou vacilante a espada
fincada no tórax e fitou com fúria os olhos de Nephael.
– Era exatamente para isso que eu
ainda precisava de você – o anjo falou exultante. – Não perderia a chance de
matá-lo com a única arma capaz de exterminar um anjo!
Um ódio impetuoso, sem precedentes
até mesmo para um demônio, o dominou. As mãos vacilantes, que seguravam a
lâmina, agarraram-na com força. Althorn tomou impulso e foi empurrando o
traidor, contra o paredão rochoso. Sustentou as mãos no apoio do cabo e o
encurralou.
Com a força de mil demônios, Althorn
enterrou o longo cabo da espada de Yahweh no peito do trapaceiro.
– E você achou mesmo que eu havia acreditado
em você? – perguntou, com uma mão pressionando o cabo e a outra o pescoço do
inimigo.
Um fluído avermelhado escapava da
ferida do celestial. Junto com ondas de energia, percorria o curto caminho do
cabo até a lâmina transpassada em seu oponente.
– Tudo fora combinado! – Althorn
falou entre dentes. – A minha prisão, o rompimento do pacto do equilíbrio, o
acordo para ficarmos com a espada... Não era de meu pai que eu queria me
vingar! Há muito esperávamos por este momento! Todos nós!
A carcaça branca de Althorn foi
ganhando a tonalidade vermelha. Estava sendo preenchido com o líquido vital de
Nephael, bombeado pelas ondas de energia que escapavam do seu corpo. As ondas
percorriam o curto trajeto entre o cabo da espada e a lâmina fincada no opositor.
– E agora, meu caro, quem não tem saída é você!
Althorn bruscamente se afastou.
Nephael caiu. Não tinha forças para
se levantar tamanho o estrago. Com o peito arrombado e o corpo exangue, só
restava esperar que fosse salvo pelos seus irmãos. Eles já chegavam, ocupando o
firmamento.
Althorn retirou a lâmina do próprio tórax,
cuja ferida se fechou de imediato. Olhou para os milhares de anjos brancos.
Quando soube que não estavam ali para atacar, segurou Nephael pelos cabelos e
com a espada sagrada arrancou-lhe a cabeça, erguendo-a a seguir.
– Vejam! – ele gritou. – Vejam o que
restou do nosso algoz!
Os celestiais menearam as cabeças.
O anjo vermelho lançou a cabeça de
Nephael na fenda da montanha. Uma explosão chacoalhou o solo. A rocha arrebentou
arremessando pedras morro abaixo e o bloqueio foi desfeito.
Feito um vulcão em erupção, a
montanha cuspia demônios. Eles preencheram céus e terra em mesmo número dos
celestiais.
– Que o equilíbrio seja restaurado!
– Althorn bradou causando um furdunço de contentamento.
O arcanjo Gabriel se aproximou. Sem
nada dizer, Althorn entregou a ele a espada, que deveria voltar para o seu
lugar.
– Este é o final de uma era –
Gabriel tomou a palavra. – É a retomada de um tempo onde cada ser humano pode
ter o livre arbítrio. Nephael jamais compreendeu que a constante criação e
alteração do universo dependem de nossa sintonia. Mas eu não o culpo – baixou o
olhar com tristeza e um breve silêncio se fez. – Obviamente viver em um mundo
de paz, sem o toque do mal seria magnífico, porém utópico – voltou os olhos
para Althorn por alguns instantes. – Nossas interações são energias
complementares que se equilibram. Além de tudo o que envolve o cosmos, é deste
fluxo energético que também depende o aprimoramento dos homens. Assim foi no
princípio e que assim seja para sempre.
O arcanjo fez um gesto de
agradecimento. Althorn retribuiu.
Assim que Gabriel se retirou, anjos
e demônios se dispersaram. Cada um deles tinha funções importantes a cumprir.
– Ele não quis saber como você
roubou a espada tão rapidamente? – Mitrius perguntou ao se aproximar do filho.
– Não. Talvez tenha pensado que a
peguei sem que fosse percebido.
– Ele jamais desconfiou.
– É verdade. Jamais desconfiou que nós
nos unimos ao seu próprio povo para que fosse banido. Foi uma vingança contra a
sua tirania. Uma vingança lenta e dolorosa para todos nós.
– Certamente. Mas deixemos o passado
para trás. Como diria um velho demônio que conheci, para a desgraça da espécie
humana, mais uma página se cumpriu!
– Ah, por favor, não me fale em
páginas!
Ambos riram.