sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Um sombrio mundo preto e branco


 

Samba Lelê tá doente

Tá com a cabeça quebrada

Samba Lelê precisava

É de umas boas palmadas


Quem vai a Cirandópolis pela primeira vez e vê o Bosque da Solidão ocupando toda a margem oeste do rio Cenira, não imagina que além daquelas árvores existe uma imensa fazenda. São terras onde o dono, conhecido como Barão do Bosque, mantém seus animais, sua plantação de milho e seu pomposo casarão através dos serviços dos escravos.

Há muitos e muitos anos, quando o antepassado do Barão, um forasteiro chamado Dom Rodrigues de Alvarenga, embrenhou-se por aqueles matos disposto a fazer dali o seu recanto, encontrou moradores quase primitivos. Dizem que o homem hospedou-se com os nativos e passou meses aprendendo a sua cultura. Depois de se fazer de amigo e conquistar a sua confiança, ensinou-os a falar a sua língua e prometeu alimentá-los, além de dar a eles uma moradia tão sólida quanto uma rocha, onde nem um vento ou chuva pudesse atingi-los. Assegurou com veemência a proteção de todos contra o frio e a fome, e jurou livrá-los dos perigos da floresta.

Diante da tão espetacular promessa, os olhos de todos os homens, mulheres e crianças da tribo ganharam novo brilho. Entretanto, Dom Rodrigues foi questionado sobre o que iria querer em troca do favor.

Ele não mentiu. Disse precisar de homens dispostos a trabalhar; desmatar as árvores e construir o recanto planejado. Caso o ajudassem, seriam como uma família vivendo no paraíso. Dom Rodrigues explicou como seria o local, despertando neles um avolumado de sonhos onde depositaram enorme expectativa. Garantiu que depois de tudo pronto, se eles quisessem fazer pequenos serviços, poderiam continuar morando na fazenda, onde nunca mais, nem uma besta selvagem tiraria a vida de seus filhos inocentes.

O trabalho em troca do conforto e da segurança pereceu bastante justo. E foi assim que, felizes da vida, as pessoas da tribo concordaram em ajudar o forasteiro na sua investida. Cada árvore cortada, cada tijolo fabricado para a construção da casa grande e da senzala, cada semente cultivada e cada animal criado tem o suor daquele povo. Até os dias de hoje os oriundos da mata são escravos na fazenda, herdada nesta geração pelo Barão do Bosque; o homem mais cruel com quem tiveram que lidar.

De fato, a estabilidade prometida se cumpriu, mas os pequenos serviços tornaram-se pesados fardos. De repente, viram-se presos ali. Jamais poderiam abandonar aquele tipo de vida e voltar a morar na floresta. Os que tentaram foram acorrentados, castigados e até mortos.

Embora perder os entes queridos para a morte por conta da crueldade do Barão fosse triste e doloroso, o óbito da sanidade de alguém amado parecia tão devastador quanto o fim da vida. Era nisso que pensava Vinza, ao olhar desconsolada para o marido cavando a terra com uma pá, só para preencher o buraco novamente depois.

Não havia lógica alguma no ritual que Zuri passou a seguir desde que a sua mãe, Samba Lelê, fora assassinada. Ele parecia não se importar com os pares de olhos que o observavam de dentro da senzala. Nem uma voz ousava embaraçar-se ao som das pazadas na terra. A única intrometida era a madrugada escura, que vez ou outra, ressentida por ter a sua quietude quebrada, chorava gotas de garoa.

Vinza não se atreveria interrompê-lo e nem questioná-lo sobre os motivos da estranha atitude. Ela havia perguntado a ele há algum tempo. Queria saber o que se passava em sua cabeça, mas em vez de uma resposta coerente, ela se deparou com um homem feroz, que prontamente a atacou com violência, mesmo estando ela prestes a dar à luz uma criança.

Um firme silêncio era a resposta de Zuri aos outros indagadores. Evidentemente, o único filho de Samba Lelê estava vivendo momentos de loucura. E não era para menos; dias depois da morte da mãe, o pobre diabo recebeu a notícia de que a esposa havia engravidado do Barão; situação bastante comum na fazenda. Dezenas de filhos mestiços e bastardos do senhor daquelas terras nasciam e cresciam para servir a ele e aos seus descendentes brancos. Mas Zuri indignou-se a tal ponto, que preferia cavar, cavar, cobrir, cobrir, em vez de falar, chorar, ou quem sabe, acabar matando alguém. Pelo menos assim pensavam todos. Não poderia ser outra coisa senão um modo de externar a dor.

Depois da exaustiva tarefa, ele sempre se aproximava da senzala arrastando os pés a passos lamentosos e previsíveis. Seu semblante era tão decifrável quanto o olhar de um peixe. Sem dizer palavra, deitava-se e dormia. Sob sua cabeça, um travesseiro de palha e um sombrio mundo preto e branco. Pelo seu corpo, olhares pesarosos

passeavam, carregados de pena e de julgamentos que caíam sobre Vinza como se ela fosse a culpada pela desventura do marido.

Mas ninguém poderia saber o que estava acontecendo, exceto ele próprio. O seu comportamento nada tinha a ver com a gravidez da esposa. Obviamente ficou louco quando soube da criança, temia que não conseguisse aceitá-la em seu meio. O desejo do patrão por Vinza não era segredo para ele e nem para ninguém. Nenhuma mulher escolhida pelo Barão tinha a opção de recusar o que ele propunha, tampouco tinham seus companheiros o poder de impedir que elas fossem satisfazer as vontades do seu senhor.

Zuri não correspondia em nada à imagem que faziam dele. A loucura que todos achavam tê-lo possuído, não passava de pura sensatez. Um dia eles saberiam o porquê do buraco. E este dia poderia bem ser amanhã ou depois.

Agora, no caminho do inconsciente, achava que seria capaz ao menos de livrar-se das ásperas memórias, mas elas vinham em seus sonhos enquanto ele assistia a tudo repetidamente; um espectador da própria desgraça. Nesses momentos, sua mente voltava-se pensativa para a morte. Embora tivesse ciência de ser aquela a sua pena a ser cumprida, a predisposição para cometer a covardia dos fracos andava de mãos dadas com o cansaço. Ele não aguentava mais. Ainda que não houvesse emoção alguma petrificada em sua fisionomia, por dentro os sentimentos de culpa, fracasso e remorso misturavam-se com vagos fragmentos de lembrança e a sua vida havia se tornado tão surreal quanto aquele pesadelo confuso. Um sonho torpe do qual ele só queria acordar.

Quando o dia nasceu, Zuri já havia decidido o que fazer a respeito daquela sensação ruim. Embrenhou-se no milharal e sentou-se com as pernas cruzadas, deixando que as folhas verdes o acobertassem, escondessem-no até do próprio céu. Embora os raios de sol teimassem em passar pelas pequenas brechas sobre sua cabeça, ele não se sentiu espionado. Estava fora da realidade. A faca em sua mão tremeluzia desencadeando uma vertigem gigantesca. O rosto refletido na lâmina tinha uma expressão que ia muito além da derrota; estava torto como a sua alma, desfigurado como o seu destino.

Não fosse pelas folhas salpicadas de céu atrás de si, ele se permitiria cair no abismo azul e infinito. Mas em vez disso, engolfado num estado febril sem precedentes, lembrou-se do som dos passos do barão se aproximando da senzala na fatídica noite em que sua esposa fora arrancada do seu lado. As imagens voltavam em sequência, torturando-o mais do que podia suportar.

Na ocasião, o barão observou os seus escravos sob as luzes bruxuleantes das velas por um longo tempo. Depois apontou o dedo indicador para Vinza, escolhendo-a como se escolhe um porco para o abate. Zuri protestou, mas o estalar dos chicotes em suas costas o fez calar. Ele ficou ali chorando, impotente enquanto Vinza era levada para a casa grande.

Ela foi banhada e preparada para entrar no quarto do barão contra a sua vontade. Viu-se nua e assustada diante de um grande espelho tão logo alguém a empurrou para o recinto. E foi só o que ela disse quando a perguntaram. O que aconteceu depois, ela nunca mencionou. Mas nem precisava, pois todos sabiam. Todos! Inclusive a senhora da fazenda e as suas filhas, cuja zanga de nada adiantava. O barão levava para a sua

cama quem bem entendesse. E nessas noites de deleite sem-vergonha, as mulheres da casa grande se recolhiam nos aposentos dos fundos, a fim de pouparem os ouvidos do que quer que fosse.

Na manhã seguinte, após ser dispensada, Vinza mal pisou na senzala e Zuri já a arrastava pelo mato. Sua intenção era alcançar o rio Cenira, cruzá-lo e desaparecer nos cantos mais longínquos de Cirandópolis. Depois iria sair da cidade, do país e do continente se fosse possível. Ele não suportaria outra noite como aquela. Não ficaria esperando que o barão levasse sua mulher mais uma vez sem fazer nada.

Não chegaram a percorrer nem um quarto do quilometro e meio de mata que separava a fazenda do rio e foram capturados pelos capangas do barão. Zuri nunca descobriu quem o denunciou, mas a ira que o consumiu durante toda aquela noite fez com que falasse aos quatro ventos sobre o seu plano de fugir. Depois disso ele calou-se quase por completo. Precisava bolar um segundo plano para a sua fuga e era exatamente isso o que fazia enquanto o chicote cortava-lhe as costas pela desobediência.

Passaram-se alguns dias e as feridas da pele cicatrizavam aos poucos. O castigo fora intenso. Talvez o barão tivesse deixado Vinza em paz nas noites seguintes se Zuri não demonstrasse tanto transtorno. Seu plano agora era matá-lo, nem que morresse também.

Mas Samba Lelê tratou de tirar tal ideia da cabeça do filho. Se o barão morresse, não haveria substituto e eles passariam fome ou comeriam apenas milho até o fim dos seus dias. Aquele homem era um mal necessário, convenceu-o. Ela não se importaria de viver com menos só para livrar-se do crápula explorador, é verdade. Contudo, não diria isso ao filho nervoso e desolado. Ocultou seus reais pensamentos e sugeriu que Zuri e Vinza fugissem no carregamento de milho. As sacas eram levadas para a cidade por carroça e por barco de tempos em tempos e já estava na época de transportá-la.

Dias depois, Simão, o responsável pelo transporte da colheita, apareceu na fazenda e Zuri considerou o conselho da mãe. O plano de matar o barão era impossível de ser concretizado por conta dos capangas que o vigiavam dia e noite. Mas o transportador não o ajudaria de forma alguma, a não ser que Zuri o pagasse por isso. O preço era três sacos de moedas de ouro. Duvidando que o escravo fosse conseguir o dinheiro, Simão seguiu trabalhando durante todo aquele dia. Havia até se esquecido do apelo do escravo e já estava indo embora quando o outro chegou esbaforido, com os sacos de moedas numa mão e a esposa agarrada na outra. Os olhos de Simão arregalaram-se diante da pequena fortuna e sem ponderar o que aconteceria, ele conferiu o conteúdo dos sacos, escondeu os dois entre a carga e partiu.

Enquanto isso, o barão e sua família se reuniam com os nobres no castelo de Cirandópolis. Um banquete em comemoração aos vinte anos do príncipe Cristóvão era servido do outro lado da cidade quando Zuri invadiu a casa grande para roubar o dinheiro.

Samba Lelê era arrumadeira e cozinheira na casa. Ela não apenas sabia onde o senhor guardava o seu tesouro, como também conhecia uma passagem subterrânea que ia de um buraco acima de qualquer suspeita no meio do bosque até a cozinha, onde uma porta disfarçada de armário escondia o caminho secreto a ser utilizado pela família como rota de fuga caso fosse necessário.

Disposta a ajudar o filho, ela revelou a ele o que sabia e por este motivo Zuri concluiu com sucesso o seu intuito.

Impossibilitados de ver o caminho ao redor e com as pernas dormentes por conta dos sacos de milho sobre eles, Zuri e Vinza não repararam quando a carroça retornou. Sem saber, naquele momento, que o transportador havia se arrependido por ter aceitado o fruto de um roubo e retornava para devolver o ouro e os escravos, o casal fazia planos para uma nova vida.

Quando Simão parou e mandou que descessem, os dois esperavam ver o rio, mas ao invés disso, deram de cara com o barão, que havia voltado do castelo e recuperava suas moedas roubadas. Ele afastou-se sem dizer palavra alguma, carregando um olhar de ódio.

– Ele não vai nos castigar? – perguntou a mulher, inconformada. E logo sua resposta veio da forma mais brutal possível. O barão do bosque aproximou-se do tronco, onde Samba Lelê estava acorrentada e muito ferida. Sem pestanejar, o senhor daquelas terras segurou o pescoço da escrava com as duas mãos e em seguida o estalo mais pavoroso da vida de Zuri e de todos foi ouvido.

– Espero que tenha aprendido desta vez! – gritou, olhando fixamente para o filho da morta enquanto limpava as mãos nas roupas, com cara de nojo por ter sido obrigado a tocá-la. – E se não for suficiente, a próxima será essa aí – apontou para Vinza e retirou-se, deixando a ameaça.

É dispensável dizer o que aconteceu depois; choros, lamentos, remorso e por fim o enterro de Samba Lelê.

Ali no milharal, com as pernas cruzadas, todas essas lembranças se esvaiam junto com o sangue de Zuri, que segurava a faca cravada no peito, tentando rasgar-se um pouco mais e sendo impedido pela dor.

Ele não viveu para ver o nascimento da criança que Vinza carregava. Não era um menino mestiço e sim seu próprio filho. E embora o mistério do buraco tivesse permanecido em segredo até a sua morte, ele se desfez de repente, feito nuvem soprada pelo vento.

Sem Zuri para enterrar a mãe sempre que ela surgia do meio do bosque, todos sentiram os ossos gelar ao vê-la pela primeira vez. Samba Lelê perambula em frente à senzala todas as noites, com a cabeça frouxa, com os olhos opacos... E de manhã cedo some como fumaça no ar.

E para quê enterrá-la, como o filho fazia, se ela sempre volta? Ele apenas queria poupá-los daquela visão infernal.

Três anos depois, olhos infantis observam a aberração.

– O que ela tem, mamãe?

– Nada de mais, querido. Ela está apenas... doente.

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