Por volta das dez da
noite, Baltus sentiu todos os pelos do corpo eriçarem ao avistar, da torre de
vigia, o campo de força mágico estourar feito uma bolha de sabão. A xícara de
café saltou dos dedos e rodopiou pela mesa até se espatifar no assoalho de
madeira. O sinal de alerta gritou ao mesmo tempo em que as criaturas noturnas
chegaram em bando. Não houve tempo para compreender que tipo de feitiço teria
sido capaz de desfazer a proteção da vila. O último pensamento, sua filha e
esposa, depois apenas a dor da dilaceração em vida. Unhas e dentes, morte e
desgraça.
Meredith desesperou-se
ao ver a horda de vampiros ondulando o solo logo abaixo. Eles não demorariam em
alcançar seus aposentos no alto do castelo. Abriu a gaveta ao lado da cama e escreveu
alguma coisa num papel, às pressas.
– Detrich – sibilou –,
Kotzland é o reino mais próximo daqui. Leve isso. Faça com que chegue ao rei. –
Colocou o bilhete num bornal e pendurou-o no pescoço do amigo de forma nervosa.
Em seguida impeliu a ele uma magia para que pudesse cumprir com a missão. Então
o vitral se rompeu vomitando cacos de vidro e revelando as asas negras e as
garras que levaram para longe a feiticeira de Gadham.
Dezenas de noturnos
invadiram o recinto. Sob os olhos de Detrich, os bichos do inferno pulavam
feito macacos, quebravam tudo ao redor, escalavam as paredes. Eles voavam e
fediam. O amigo da feiticeira tremeu de
medo, mas permaneceu imóvel e quieto atrás da porta escancarada. Talvez
Meredith o houvesse presenteado com a invisibilidade. Ou talvez, ele sempre a
tivera, assim como seu pai e seu avô.
Do lado de fora, em
posse do que viera buscar e ganhando os céus, Noctem deu o sinal aos servos e
todos se retiraram, deixando um rastro de sangue medonho. Poucos habitantes
sobreviveram ao ataque. Cada casa da vila foi violada, cada marido, esposa e
criança, assassinada. Os que ainda possuíam algum resquício de vida, agonizaram
até a chegada do sol impiedoso de Gadham, quando foram finalmente dizimados por
seus raios.
Detrich estava
protegido, mas não sabia por quanto tempo. Por este motivo, tão logo os
vampiros debandaram, ele iniciou sua jornada para Kotzland. Embora longe do
reino destruído quando o sol apontou no céu, foi capaz de ouvir os estalos das
carnes do seu povo fritando. Sem o campo de força de Meredith, nada sobrevivia à
fúria do astro rei. Apenas as profundezas das cavernas das terras do sul
possuíam segurança. Mas estas eram tomadas por Noctem e suas bestas da noite.
***
Há dias e noites sem as
provisões necessárias para a jornada à qual enfrentava, Detrich movia as pernas
de forma automática. Os arremedos de passos o arrastavam para frente num ritmo
inconstante e precário. Ele sentia muita sede e o cansaço o abatia.
Sob o encanto de
Meredith, a sensação térmica era de cinquenta graus, o suficiente para
conseguir chegar a Kotzland com vida, desde que não demorasse muito. Ao seu
redor nada além do solo seco, rachado pelo calor infernal e as miragens de
Oasis exercitando o pensamento, ajudando-o a manter-se firme em seu propósito.
Mal pôde acreditar
quando avistou as muralhas de Kotzland e embora se esforçasse para andar mais
depressa, as línguas de fogo cuspidas do céu o atrasavam. As paredes de pedra
logo à frente dançavam em ondas escaldantes sob o olhar prejudicado do
andarilho. Ele temeu morrer ali tão perto de seu destino, mas não poderia
deixar de entregar a mensagem. Respirou fundo. O ar quente rasgando seus
pulmões fazia de seus movimentos terríveis martírios. Ainda assim, ele seguiu
ultrapassando todos os limites de seu corpo e de sua mente. Era preciso chegar
ao rei a qualquer custo. Meredith deveria ser salva.
Aos portais de Kotzland,
Detrich perdeu os sentidos. O corpo vencido pela exaustão desabou depois de
trombar contra a madeira da porta usando o resto de suas forças. O barulho
despertou as duas sentinelas que guardavam a fortaleza pelo lado de dentro e
elas abriram o recurso de imediato.
Esperando ver o rosto
de Meredith, a única capaz de transpor o deserto e alcançar Kotzland com vida
àquela hora do dia, os guardas não cogitaram a possibilidade de ser qualquer
outro além da feiticeira do lado de fora. A fortaleza jamais corria perigo
enquanto o sol estivesse suspenso e o campo de força mágico mantinha os
vampiros afastados durante as noites.
Quando a baforada
quente de Ghadam invadiu o recinto revelando o pobre Detrich caído ao chão, as
sentinelas se espantaram. De pronto,
puxaram o corajoso visitante para os braços gélidos de Kotzland, onde agora os
portais fechados anteparavam o calor.
O frescor do ambiente
foi aliviando o tormento aos poucos. Do corpo do andarilho, uma fumaça branca
se soltava por conta do contraste de temperatura e tão logo a consciência restabeleceu,
ele se deu conta do cantil que derramava água em sua boca. Sorveu todo o
líquido com desespero e então outro cantil foi derramado por inteiro e mais
outro e mais outro. Até que a sede fosse saciada por completo e ele pudesse,
finalmente, se colocar de pé.
– Este é o cavalo da
feiticeira – disse uma das sentinelas. Detrich confirmou com um movimento de
cabeça e resfolegou vibrando as narinas.
– Onde está Meredith? –
perguntou a outra ao corcel branco, mas ele não podia responder com palavras.
Balançou o pescoço evidenciando o bornal.
– Está bem. A resposta
está aí dentro, não é, amigão? – acariciou a crina perolada. – Vou levá-lo ao
rei imediatamente – dirigiu-se ao outro guarda –, ele saberá o que fazer.
– Vá. Eu vou ficar aqui
guardando os portais. Não demore. Tenho um mau pressentimento.
***
– Está além dos meus
poderes fazer o que você quer, Noctem! – Meredith berrou pela milésima vez. A
parca claridade vinda das grades da gaiola de energia onde fora trancafiada, permitia-a
enxergar alguns metros ao redor.
– Durante muitos
séculos, eu acreditei estar além dos meus poderes desfazer os campos de força
dos reinos – explicou o algoz com ares de superioridade. – E mesmo que eu
pudesse, não conseguiria prender você, tamanha a sua eficácia, eu reconheço.
Mas veja aonde cheguei! Nada é impossível para quem quer, Meredith! Basta um
pouco de persistência.
– Se quer tanto
extinguir o sol de Gadham, então por que não o faz sem mim, já que é tão
poderoso?
– Bem, extinguir o sol
é um pouco de exagero. Afastar dele o planeta seria mais fácil e você sabe que
eu não posso sozinho. É duro ter que admitir, mas preciso de você. E quando
Gadham repousar na escuridão, meu povo será livre.
– Os nossos povos já
são livres, Noctem. Você não entende! Temos as noites para irmos aonde
quisermos, já não basta?
– Você se contenta com
pouco. Esse é o seu problema. Eu quero mais tempo lá fora. Sem o sol...
– Sem o sol, todos
congelariam. O afastamento do planeta não vai impedir que a luz e o calor
cheguem até nós. A sua burrice me enoja!
– Ora, ora ora... Que bruxa
inteligente! – zombou. – Não vamos tirar Gadham da órbita solar, apenas
afastá-lo o bastante para que a luz não chegue.
Meredith suspirou. Como
explicar algo a quem não quer entender? Impossível manter o planeta na órbita e
torná-lo inalcançável pelo sol.
– Eu não tenho poderes
sobre o sol, o planeta ou o espaço. E mesmo que tivesse, não o ajudaria –
contestou com os olhos fixos na aberração alada.
– Vai cooperar, sim!
Você teve uma amostra do que posso fazer aos quinze reinos que ainda estão
invictos. Eu acabarei com todos e nenhum humano restará. Quanto vale as vidas
deles pra você?
Meredith baixou a
cabeça e engoliu em seco.
– Se matar a todos, seu
povo também perecerá – falou em baixo tom.
– É a minha vez de te
chamar de burra, oh grande feiticeira de Novic! O sangue nunca foi nosso
alimento aqui. Aliás, até foi. Mas isso já faz tempo. Agora é apenas diversão.
Como você acha que sobrevivemos depois de expulsarmos os humanos das cavernas e
de os campos de força serem instalados nos reinos onde vocês se agruparam?
– Essa é uma pergunta
que eu sempre me fiz, mas não encontrei respostas. Nós não os tememos, Noctem!
Poderíamos exterminar a todos vocês, entretanto prezamos pela paz.
– Sim! Cada qual em seu
território! A velha concepção de que cada vida deve ser respeitada. Isso é
realmente tedioso, sabe, Meredith. Contudo, as coisas ficarão do jeito que são
tão logo você fizer o que eu mando. Cada qual em sua infinita paz. Tem minha
palavra.
Meredith virou a
cabeça, desconsolada. Não acreditava nele. Os olhos pousaram num escudo
recostado à parede. – Warmoth... – sussurrou, espremendo os olhos úmidos de
lágrimas – Warmoth está entre vocês...
– O seu irmão a traiu.
Traiu seu povo em troca da vida eterna, em troca da promessa de governar Gadham
ao meu lado. Parece que a minha paz é melhor do que a sua, não é mesmo?
– Warmoth desfez os
campos mágicos. Nunca foi você. Ele os provê com a energia de que precisam...
Não posso acreditar. Eu pensei que ele estivesse...
– Morto – disse
Warmoth, revelando-se por detrás da escuridão de uma fenda na caverna.
A feiticeira
indignou-se. Ver o irmão transformado numa besta noturna a consternou. Sua
aparência era cinza e suja. Da boca sorridente, saltavam os caninos grandes,
perfurando à distância um coração bastante magoado.
– Então é isso. Tudo
está claro agora. Isso explica muita coisa...
– Chega de conversa! –
interpelou o líder. – Agora que a família está reunida, podemos iniciar o
ritual. Ou nos livramos do sol, ou o dos humanos. Você escolhe, Meredith! A
noite chegou. Devo agrupar a horda e partir para a festa?
Há até alguns momentos,
a feiticeira estivera disposta a barganhar, pois duvidava dos poderes de
Noctem. O intelecto precário do líder dos vampiros era algo em seu favor.
Entretanto, a situação mudara. A força de Warmoth era infinitamente superior a
sua. Ele poderia afastar o planeta do sol sozinho, o que a fez se perguntar por
que, afinal, precisavam dela.
– Por que precisam de
mim? – quis saber.
– Horda, à postos! –
Noctem decretou e a caverna pôs se em ordem até onde as vistas alcançavam.
– Não! Por favor, não! Deixe
o povo em paz! Eu vou... Eu vou tentar.
– Ótimo! E é bom que
consiga! – lançou-a um olhar de esguelha. – Descansar! – bradou.
E todos se dispersaram na escuridão.
***
Assim que Detrich
entregou a mensagem, o rei Kotz reuniu o seu exército. Precisaria convocar os
homens dos quinze reinos para que juntos resgatassem Meredith. Então dividiu a
sua tropa em quinze partes iguais, cada grupo composto por cerca de duzentos soldados.
Antes mesmo da noite refrescar o dia quente, eles partiram.
Detrich correu sem
montaria pelo descampado de Gadham. Ele iria direto para as terras do sul, onde
os exércitos iriam se reunir para invadir as cavernas e exterminar os vampiros.
Sua missão era localizar em qual delas se encontrava a feiticeira sequestrada,
assim não perderiam tempo quando todos chegassem ao local combinado.
Em quatro dias e três
noites, o corcel atravessou as fronteiras das terras do sul. O encanto que o
impedia de queimar sob o sol ainda resistia, mas os soldados levariam mais
tempo. Eles se guardavam em uma das fortalezas durante o dia e seguiam viagem
apenas à noite.
O cavalo estava
impaciente. Não foi difícil localizar Meredith. A luz rompendo a escuridão de uma
das cavernas denunciou o cativeiro, mas ele precisava esperar pelos outros. Ninguém
o notou. Fora o próprio Warmoth quem, um dia, encantara os animais, tornando-os
invisíveis aos noturnos como parte de uma experiência. A intenção era tornar a
vida dos humanos mais segura utilizando o mesmo procedimento. Entretanto,
quando a primeira parte do teste fora concluída, Warmoth desapareceu e todos
choraram a sua morte.
Sabendo que se ficasse
ali cometeria uma loucura, Detrich decidiu retornar ao reino mais próximo e lá
se encontrar com um dos exércitos para que então voltassem juntos.
***
– Qual é o plano? –
Perguntou o rei de Midland aos cinco cavaleiros, porta-vozes do grupo.
– Os vampiros não sabem
que estivemos nos preparando para esta situação há muito tempo. Todas as
armaduras e espadas forjadas dia após dia, desde o sumiço de Warmoth,
finalmente serão usadas.
– A paz será quebrada.
– A paz foi quebrada
quando o povo de Novic foi assassinado e Meredith sequestrada. A feiticeira
precisa de nós agora. Nós esperávamos por isso, vossa alteza sabe bem. É
chegada a hora. Podemos contar com a sua ajuda?
– Certamente –
assegurou o rei, convocando de imediato os seus soldados.
Não houve reino que
ficasse de fora ou que se recusasse. E após sete dias e seis noites, quarenta
mil homens bloquearam as entradas das cavernas. Elas eram muitas e as espadas
de prata cortavam cabeças e membros sem descanso. Armados apenas com dentes e
garras e desprovidos de destreza, os vampiros eram exterminados com facilidade,
embora seu número parecesse infinito, deixando os soldados bastante cansados.
Noctem estremeceu
quando a matança começou. Não podia imaginar que toda Gadham possuísse armas e
vestimentas apropriadas para a guerra. No topo de uma montanha, ele escoltava
os irmãos e assistia seu povo morrer. Alguns se salvavam ao ganharem os céus,
mas a maioria, que estava dentro das cavernas no momento do ataque, não
conseguia escapar.
Warmoth mantinha uma
mão pousada no ombro de Meredith e a outra estendida ao espaço. Com a união de
suas forças, o pequeno planeta era afastado aos poucos. Antes do nascer do sol,
deveria estar num lugar seguro para os vampiros. Meredith se sentia exausta.
Entendia agora por que precisavam dela para a investida. Ela servia como
condutora e morreria em breve no lugar do seu irmão traidor.
Um grupo de guerreiros
subiu por detrás da montanha, mas a intenção da surpresa não fora possível. As
bestas voadoras os denunciaram, atrasando-os como podiam e colocando Noctem em
alerta.
– Vamos! – ele berrava
aos feiticeiros. Depressa com isso!
Meredith caiu de
joelhos continuando a ter sua energia drenada e direcionada ao espaço.
A luta se prolongou e a
claridade do dia foi se aproximando aos poucos.
– Depressa! Vamos todos
morrer queimados, seus idiotas! – desesperava-se o líder, impossibilitado de
esconder-se numa das cavernas, tomadas pelos soldados.
Detrich percebeu que o
exército não chegaria ao topo da montanha. Os seres voadores agarravam um a um
pelos ombros, jogando-os para baixo. Precisava salvar Meredith a qualquer
custo. Reuniu sua coragem e pôs-se a subir em disparada, desviando dos
vampiros, transpondo as pedras e os obstáculos com precisão.
Noctem o viu chegar e
voou. O coice inesperado arremessou o irmão da feiticeira morro abaixo,
interrompendo o ritual. Meredith caiu desmaiada, pálida como um papel.
Ele tentou colocá-la
sobre si. Baixou o pescoço, ergueu-a mais de uma vez e ela sempre escorregava.
Tinha que tirá-la dali. O sol a mataria.
Os guerreiros de Gadham
continuavam a dizimar as criaturas, tentando impedir que saíssem das cavernas e
voassem. Mas ao notarem o sol iminente, mudaram de estratégia. Abriram caminho
para os vampiros e um enxame negro povoou o céu.
Detrich tentava de
tudo, mas não conseguia colocar Meredith em seu lombo. Com o primeiro raio do
sol por vir e num ato de desespero, postou-se sobre ela, na esperança de
salvá-la.
Warmoth fora resgatado
por Noctem. Estava fraco e jazia pendurado nas garras fortes que o sustentavam
no ar.
Então ele chegou. O astro
rei mostrou-se finalmente trazendo pânico e desolação.
Os vampiros explodiram
um a um e uma chuva de cinzas caiu sobre os soldados de Gadham. Esperando
também pela morte, muitos homens se agacharam, protegendo o rosto com os
braços. Outros conseguiram se abrigar nas cavernas agora vazias.
Com a respiração
acelerada e o corpo trêmulo, Kotz foi o primeiro a perceber não ser ferido pelo
sol. A gargalhada sonora tirou todos do transe. Aos poucos, os guerreiros foram
se levantando, sentindo o calor brando a tocá-los, livrando-se dos elmos com
incredulidade.
Os soldados saíram das
cavernas hesitantes e com alegria testemunharam o milagre.
O grupo que tentava
subir a montanha, finalmente conseguiu chegar ao topo. Colocaram Meredith sobre
seu cavalo exultante e aliviado com o desfecho.
A feiticeira exausta
acordou dias depois, quando em segurança repousava sob os cuidados do reino de
Kotz. Detrich, sempre ao seu lado, resfolegou ao vê-la abrir os olhos e
relinchou com alegria, fazendo com que todas as pessoas próximas aos seus
aposentos viessem vê-la.
O rei contou o que
havia acontecido. Meredith explicou que durante o ritual, Gadham fora afastado
do sol o bastante para que ele não mais os ferisse, embora continuasse a ser
letal aos vampiros.
– Não sobrou nenhum –
disse o rei, sorridente.
A feiticeira suspirou e
sugeriu uma grande festa de comemoração.
Com o tempo, das rochas
secas brotaram a água, antes só conseguida através da magia. Conforme o vapor
subia, as nuvens traziam a abençoada chuva. O verde brotou em toda Gadham
agraciando o povo com frutas e verduras. Rios e lagos se formaram. O clima
agora era estável. Todo o mal fora expungido. Os campos de força foram
retirados dos reinos e todos puderam desfrutar da verdadeira paz.
Entretanto, olhos
vermelhos de ódio se espremiam numa daquelas cavernas sem que ninguém
desconfiasse.
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