sexta-feira, 4 de março de 2022

O Porão do Diabo

 


Assim que o ponteiro maior estalou no número doze do relógio, Vera abriu os olhos. Três da madrugada. Hora de o demônio despontar.

            Durante alguns anos aquela aparição espectral nada dizia, apenas a contemplava por alguns segundos desaparecendo no ar no ápice de seu desespero.

            Vera beirou à loucura durante muito tempo, mas acabou se acostumando com a pontual visita que vêm ocorrendo desde 1997.

            É um jovem de batina com olhar triste e intrigante. Já há muito olhava para ele sem medo, mas com tristeza. Se pelo menos ele falasse com ela, se a contasse o motivo de suas visitas ou dissesse como ela poderia ajudar, o faria com prazer. Deixar de mergulhar no ímpeto da amargura que aqueles olhos opacos a transmitiam, seria um alívio para a sua alma.

            Vera sentou-se na cama, sonolenta, e logo localizou a assombração num canto do quarto.

            – Oi – ela disse bocejando.

            Ele se aproximou e num sobressalto Vera caiu sobre o carpete duro. Ele nunca havia se movido antes. Aparecia e sumia sempre no mesmo lugar.

            Gesticulando como se pedisse desculpas pelo susto, o fantasma começou a falar.

            – Preciso te contar sobre a maldição de Ashville.

            – O quê? – ela perguntou confusa enquanto retornava trêmula para a cama.

            – A maldição de Ashville, no Condado de Pickaway, já ouviu falar?

            – Não, mas fale, me conte – ela pediu ansiosa e deslumbrada por finalmente ouvir a voz da aparição.

            – Bem, eu nasci, cresci e morri nesta vila localizada no estado de Ohio. O fato é que depois da minha morte, descobri que todas as almas que lá desencarnaram por meios sobrenaturais, estão presas no porão do diabo e a única maneira de libertá-las é encontrando a chave dourada que jaz à beira de um afluente do Rio Ohio onde o próprio capeta a enterrou.

            – Sei, e você espera que eu vá até lá e encontre a tal chave para libertar as pobres almas? E é por isso que tem me visitado durante todos esses anos?

            Ele inclinou levemente a cabeça num gesto afirmativo.

            – E por que eu tenho que fazer isso?

            – Você é minha descendente e além do mais eu, como tendo sido o último padre daquele condado, sinto-me responsável por não ter conseguido combater o mal que lá habita.

            – Como assim descendente de um padre? Eu? Não estou entendendo.

            – É, eu... – ele pigarreou como se possuísse um corpo. – Bem, foram poucas as missas que consegui realizar naquele local maldito e numa dessas tentativas, o teto da igreja desabou atingindo muitas pessoas. Na ocasião, eu tive apenas uma leve contusão no braço e no dia seguinte saí para visitar os fiéis que haviam sofrido ferimentos mais graves.

            Quando cheguei à casa do xerife para visitar a sua esposa ferida, fiquei surpreso ao encontrar a porta entreaberta. Chamei inúmeras vezes e como ninguém respondeu, decidi entrar.

            Foi então que a vi dormindo. Linda na camisola transparente que evidenciava o corpo nu e perfeito debaixo do pano fino. Naquele momento eu reprimi todo o desejo que subia fervilhante e se apossava de cada centímetro da minha carne em chamas.

            Eu ia me retirar e já tinha virado as costas quando ouvi sua doce voz a me chamar.

            Como se pressentisse o meu anseio, ela nem se deu ao trabalho de cobrir-se quando eu me voltei, e mesmo com os arranhões causados pelo desabamento do teto, ela estava linda e irresistível. Não pude me conter diante de toda aquela insinuação libidinosa e o ato inevitável foi então consumado. Nove meses depois ela deu à luz uma menina do meu próprio sangue, mas infelizmente não cheguei a conhecê-la, pois já havia sido assassinado quando a pequena Mary veio ao mundo – ele baixou o olhar com tristeza e explicou após um suspiro:

            – É por isso que digo que você é minha descendente.

            – E como foi que você morreu? – perguntou fascinada e já livre da tremedeira.

            – É constrangedor. Não quero contar isso agora. Preciso saber se vai me ajudar a recuperar a chave e libertar as almas do porão do diabo.

            Vera pensou por alguns instantes e ocorreu-lhe, de repente, outra questão:

            – Por que me diz isso somente agora? Por que não falou antes? Depois de todos estes anos você...

            – Estava reunindo forças para falar – ele a interrompeu. – A comunicação entre os mundos não é tão simples assim. Por favor, diga que vai ajudar.

            Ela percebeu a urgência de seu apelo e vislumbrou o espírito enfraquecendo, transparente. Traços borrados e ondulados misturaram-se por completo com a escuridão do seu quarto antes mesmo que pudesse responder.

            De qualquer maneira, ela não tinha uma resposta. Não sabia ao certo o que fazer. Inúmeras questões abominavam-lhe a mente, mas a melancolia atormentada daquela alma em desespero, a faria considerar a hipótese de ajudar.

            Vera entregou-se ao sono e teve um dia agitado. Mal podia esperar para reencontrar seu antepassado e dar a ele a resposta tão almejada.

            É ela ajudaria sim. Não poderia conviver com o remorso de ter se negado a fazer algo tão importante. Além do mais, o fantasma a deixaria em paz depois disso, não deixaria?

            Às três da manhã ele apareceu. Vera ainda estava acordada contando os minutos para a sua chegada.

            – Eu vou te ajudar. Me diz o que fazer – ela disse entusiasmada assim que o viu, mas ele logo se transformou numa névoa sem densidade e desapareceu na penumbra esboçando um sorriso.

            Estava fraco, ela imaginou. Pelo menos ele ouvira a sua resposta, disso tinha certeza.

            Na noite seguinte a mesma coisa aconteceu. A energia que o fantasma acumulara não era suficiente para que conversasse.

            Céus, teria Vera que esperar mais alguns anos antes que o padre pudesse falar de novo?

            Decidiu não esperar nem mais um minuto e sim agir. Pesquisou tudo o que pôde a respeito de Ashville em Ohio, fez suas malas e dirigiu-se para lá.

            Após um voo turbulento, pegou um taxi no aeroporto e deu as instruções ao motorista. Este a deixou no único bar que havia no Condado de Pickaway.

            Vera entrou, pediu uma bebida refrescante e perguntou como faria para chegar a Ashville. Imediatamente todos os olhares se voltaram para ela, espantados. Hesitante e tartamudeando, o barman respondeu roçando a barba rala com as pontas dos dedos:

            – Olha, eu mesmo posso levá-la até a entrada da vila, mas terá que seguir a pé após o portal, pois lá eu não entro.

            – Mas eu achei que Ashville fosse aqui por perto – ela falou encabulada.

            – Sim, não é tão longe, mas é preciso ir de carro. Não é aconselhável caminhar por aqui.

            – E por que não?

            – É uma história muito longa que começou em 1845...

            – Freeman! – alguém do bar advertiu.

            – Bem moça, nós não falamos sobre isso por aqui. Tem certeza de que quer ir até lá?

            – Sim. Poderia me levar?

            Todos se entreolharam e o homem insistiu:

            – Posso sim, mas tem certeza mesmo?

            Ela meneou a cabeça e então o homem corpulento gentilmente a cedeu uma carona até a entrada da vila.

            – Boa sorte! – ele disse assim que Vera saltou do carro velho.

            “Pobre moça.” Pensou. “Não sabe o que está fazendo”.

            Uma neblina espessa bloqueava a visão da extensão da rua em que Vera caminhava. A placa enferrujada a saudou com boas-vindas: Welcome to Ashville e logo abaixo da placa o desenho de um cowboy sem rosto segurava um pergaminho apagado onde só era possível reconhecer as palavras free e pray que provavelmente faziam parte de uma frase já há muito expungida do velho mural desgastado pelo tempo.

            Ela se embrenhou na névoa densa e por mais de dez minutos caminhou sem enxergar um palmo adiante naquele mar esbranquiçado de partículas fantasmagóricas.

            Prestes a ter um colapso nervoso, notou que a névoa se desfazia evidenciando as casas simples da cidade.

            – Graças a Deus! – falou aliviada.

            A impressão que teve foi de ter saído de uma máquina do tempo. As residências construídas em madeira roliça, sustentadas por vigas irregulares que debruçavam numa base de pedras, levou-a por um segundo ao núcleo de um filme de velho oeste.

            Vera ergueu as sobrancelhas pasmas ao observar com atenção as pessoas indo e vindo com seus trajes antiquados e utilizando carroças como meio de transporte.

            Senhoras com a pele castigada pelo sol retiravam baldes d’água de um poço e caminhavam com dificuldade sustentando o peso do recipiente sobre os ombros.

            Vera se aproximou daquelas mulheres que ao perceberem a sua presença deixaram escapar gemidos de pavor. Algumas delas derrubaram os baldes e correram assustadas para as suas casas batendo as portas e janelas com violência e pressa.

            – Espere! – ela gritou alcançando uma das senhoras que também se afastava.

            – Eu só quero uma informação – disse com a voz embargada.

            – Busque sua informação no Saloon. O velho Billy talvez possa te ajudar e jamais dirija novamente a palavra às mulheres de respeito dessa cidade, ouviu bem? – a velha se afastou com uma careta de repulsa e entrou na casinha batendo a porta com hostilidade.

            Vera olhou ao redor. Localizou o Saloon e caminhou até lá enquanto olhares curiosos de cavalheiros perdidos no tempo a acompanhavam.

            Empurrou vacilante uma das bandas da porta vaivém e o ranger das molas atraiu a atenção de todos os bêbados que escapavam da rotina entre copos de cachaça e jogos de carteado.

            – Se quer um emprego, ele é seu! – disse o velho corcunda que enxugava um copo num pano imundo atrás do balcão.

            – Não, eu só quero uma informação.

            Vera percebeu que o decote estava muito exagerado e talvez por isso as mulheres houvessem se afastado dela. Os homens também a confundiram com uma prostituta, que absurdo!

            Juntando a abertura da blusa que mostrava o colo nu, ela se aproximou e foi ter com o velho Billy ignorando os olhares afoitos dos bêbados que a devoravam sem disfarçar.

            – Qual é a informação que deseja, madame?

            – Parece loucura o que vou dizer, mas vim de muito longe para resolver um assunto sobre maldições que envolve esta vila.

            – Sei – Billy disse após dar uma irônica gargalhada. – Continue.

            O ranger da porta desviou o seu olhar.

            – Meu Deus! – Vera exclamou chocada.

            – Meu Deus, não. Nosso Deus! Só ele para nos ajudar a viver nesse lugar – disse o padre que acabara de entrar e já ia se sentando na roda de carteado.

            Vera ficou estática por mais de cinco minutos. Com o olhar entorpecido ela analisou aquele ser, agora em carne e osso. O fantasma de batina que invadia o seu quarto por anos a fio e lhe pedira ajuda, estava materializado bem ali à sua frente.

            – Ei, padre! – disse o velho Billy. – A moça aqui falou que veio resolver as maldições de Ashville. O que o senhor acha disso? – risadas ecoaram.

            O padre se levantou sério e aproximou-se de Vera, que custou a tomar coragem de erguer os olhos e encará-lo.

            – Venha, moça. Temos muito que falar a respeito.

            O religioso afastou-se até a porta e com muito custo Vera o seguiu. As pernas não queriam obedecer direito. Foram os passos mais difíceis de toda a sua vida.

            Entrando no que restara da igreja, Vera vislumbrou parte do teto desabado. Enquanto os olhos percorriam pelos escombros, a frase “You’re free to come in, but pray to leave” foi pronunciada pelo padre que logo em seguida a golpeou repetidas vezes causando a sua morte.

            A esposa do xerife, grávida do clérigo observava tudo, escondida atrás do altar. Abafou um grito súbito e seguiu o padre até as margens do Rio, onde ele enterrou o cadáver de Vera e retornou à igreja como se nada tivesse acontecido.

            A mulher desesperada correu para casa sem se deixar perceber e entre lágrimas e lamentos contou ao seu marido tudo sobre a traição.

            Dominado pelo ódio, o xerife apressou-se até a igreja para o ato vingativo contra o padre que inescrupulosamente seduzira a sua esposa.

            Ninguém sabe o que houve ao certo. Ninguém viu ou ouviu nada que pudesse responsabilizar o homem da lei ou quem quer que fosse pelo assassinato do religioso, que fora encontrado com o pescoço virado para trás e o crucifixo enfiado no traseiro.

            A raiva do xerife era tanta que somente matar o desgraçado não bastava.

            Fez um pacto com o diabo para que a alma do padre ficasse confinada no forte que construíra sob a sua casa.

            Brincalhão, o diabo sugeriu algo melhor. Sugeriu que parassem no tempo. Que vivessem repetidamente aquele mesmo dia até que o padre cometesse algo tão grave a ponto de impedir a passagem do seu espírito pelas portas do céu.

            – Como assim? – o xerife questionou. – Acoitar a minha mulher já não seria o bastante para que o canalha fosse para o inferno?

            – Na realidade não. Ele no mínimo teria que ter cometido um homicídio para ser tragado pelas profundezas do meu reino.

            Até aquela tarde, o assassinato de Vera jamais havia ocorrido. Desde 1856 todos daquela cidade dormiam e acordavam parados no tempo, vivendo e revivendo o mesmo dia conforme a promessa do diabo.

            E o padre, coitado! Há mais de um século terminava o dia com o crucifixo no rabo após ser desmascarado pelo xerife-corno.

            Era melhor que matasse logo alguém e encarasse de vez o inferno.

            Em Ashville, ele não poderia cometer nenhum homicídio, pois todos os habitantes da vila já estavam teoricamente mortos e presos naquele pesadelo.

            Cansado daquilo tudo, o padre conseguiu abrir uma brecha no mundo paralelo e começou a aparecer para Vera noite após noite até conquistar a sua confiança.

            Ele não mentira ao dizer que ela era sua descendente, mas inventou histórias sobre almas presas no porão do diabo para que a moça o ajudasse a se livrar da maldição.

            Assim que Vera foi assassinada, os espíritos do padre e de todos os outros habitantes de Ashville finalmente seguiram os seus caminhos.

            Vera foi a chave que abriu as portas para o céu e para o inferno. Sua alma continua perdida na cidade fantasma e continuará eternamente a vagar se ninguém tiver coragem o bastante para entrar naquela vila e encontrar os seus restos mortais.

 


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